Facebook Recua na TikTokização

No último post [27/07] nós discutimos – com a contribuição de estimados leitores – a transformação ora empreendida pelo Facebook(*) no sentido de imitar o TikTok, o que vem a significar o fim das redes sociais como as conhecemos.

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Aconteceu, porém, um evento inesperado ontem [28/07], em que a holding Meta anunciou algumas pedaladas para trás em suas metas [trocadilho infame pero inevitable]. Reproduzo abaixo, destacando em cor diferente, a abordagem do site The Verge:

O Instagram vai recuar em algumas mudanças recentes no produto após uma semana de críticas intensas, disse a empresa hoje [28/07] . A versão de teste do aplicativo – que abre em tela cheia para fotos e vídeos – será desativada nas próximas duas semanas. O Instagram também reduzirá o número de postagens recomendadas, à medida que trabalha para melhorar seus algoritmos.

“Estou feliz por termos arriscado – se não falharmos de vez em quando, não estamos pensando grande o suficiente ou sendo ousados o suficiente”, disse o chefe do Instagram, Adam Mosseri, em entrevista. “Mas nós definitivamente precisamos dar um grande passo para trás e nos reagrupar. Quando aprendermos melhor, então voltaremos com alguma nova ideia ou iteração. Vamos trabalhar nisso.”

As mudanças ocorrem em meio à crescente frustração do usuário com uma série de mudanças projetadas no Instagram para ajudá-lo a competir melhor com o TikTok e navegar na mudança mais ampla verificada no comportamento do usuário, para mais longe da fotografia, voltando a sua atenção aos vídeos. Esse tipo de redesenho geralmente provoca a ira de usuários resistentes à mudança. Todavia, neste caso, a insatisfação notável foi confirmada pelos próprios dados internos do Instagram, disse Mosseri. A tendência de os usuários assistirem a mais vídeos é real e veio antes do TikTok, disse ele.

Mas é claro que as pessoas realmente não gostaram das mudanças de design do Instagram. “As pessoas estão frustradas com as recentes modificações no design e o feedback trazido pelos dados não é bom”, disse ele. “Então, acho que precisamos dar um grande passo para trás, reagrupar e descobrir como vamos querer seguir em frente”.

A empresa também planeja mostrar aos usuários menos recomendações de algoritmo. Na quarta-feira [27/07], o CEO da Meta, Mark Zuckerberg, disse que postagens e contas recomendadas atualmente representam cerca de 15% do que você vê quando navega no Facebook, com uma porcentagem maior no Instagram.

Até o final de 2023, esse número será de cerca de 30%, disse Zuckerberg. Mas o Instagram reduzirá temporariamente a quantidade de postagens recomendadas, enquanto trabalha para melhorar suas ferramentas de personalização. Mosseri deixou claro que o recuo anunciado hoje não é permanente.

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(*) No post de quarta-feira eu não mencionei especificamente o Instagram, assim como não o fiz no título de hoje, em parte porque eu estou acostumado a me referir ao grupo Meta genericamente como “Facebook”. De fato é o Instagram que está a atrair uma maior barragem de fogo no momento, principalmente nos mercados avançados.

As redes da Meta compartilham a árvore decisória e a orientação tecnológica, o que significa que os nomes das duas redes são um tanto quanto intercambiáveis quando o assunto é o uso algoritmos para recomendação de conteúdo.

Uma rápida análise final

Parece haver uma obsessão envolvida em todo esse negócio de o Facebook tentar perseguir o mesmo mercado que o TikTok – os jovens.

Dado que nos países mais ricos – e no Brasil também – a demografia mostra claramente que há uma forte tendência ao envelhecimento da população, a estratégia do Facebook faz pouco sentido. Você acaba alienando os dois campos, tentando ser o que você não é. De um ponto de vista racional, ele deveria ter continuado com foco na realidade do mercado que tem.

A juventude e a moda sempre foram inconstantes e a marcas Facebook e Instagram hoje em dia são efetivamente um veneno para os jovens, desprezadas, ridicularizadas. Isso não vai mudar tentando torná-lo um outro TikTok. É simplesmente tarde demais.

Tentando esconder o elefante-na-sala

Zuckerberg diz que apenas 15% do conteúdo do Facebook/Instagram é originário de recomendação de algoritmos, e que o objetivo é chegar a 30% no fim do ano que vem. Isso é claramente uma falsidade, uma vez que obviamente não inclui a contribuição de terceiras partes para as recomendações de conteúdo – e nem o que é medido por observadores independentes. Lembro que para ser igual ao TikTok – e pode apostar que Zuckerberg quer ser – é necessário 100% de conteúdo recomendado e 0% de conteúdo social.

Final

A Meta não vai simplesmente desistir das mudanças anunciadas para Facebook/Instagram. A Corporação vai agora retomar a implementação das mudanças em um tom menos estridente, com um pouco mais de vagar, a conta-gotas – como sempre fez.

Já passamos do ponto onde a Meta poderia escolher sua estratégia. Agora o único caminho a seguir é ir em frente com as mudanças. Parar agora significa colapso total do negócio.

Eu ando particularmente contente com a possibilidade da restauração dos princípios originais das redes sociais [don’t be evil!], com a saída/eliminação do grande monopolista e a chance de participação de novas empresas, ideias e visões.

O que foi dito no post de quarta-feira, continua válido, e deverá ser implantado em um perfil temporal mais longo. Não terei que esperar muito — não estou ficando mais jovem. Com base na experiência anterior posso dizer que, se tiver recursos, no final de 2023 a Meta estará fazendo exatamente o que planejou fazer.

TikTokização do Facebook Marca o Fim da Era das Redes Sociais

A quinta-feira passada [21/07] poderá entrar para os anais da história como o início do fim da era das redes sociais, que deram o tom para o crescimento da internet desde o início do século. A estreia do ‘redesign’ do Facebook para ficar mais parecido com o TikTok deixa para trás a ênfase da rede no aspecto social.

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A explosão do modelo das redes sociais foi uma decorrência do aparecimento e adoção quase universal do smartphone. No início, manter contato com amigos e compartilhar experiências era o centro de tudo o que as pessoas queriam fazer online.

No novo cenário que se desenha, a experiência online tiktokizada vai passar a girar em torno do que milhões de estranhos ao redor do mundo desejam e aprovam – completamente mediada por algoritmos. Com esse movimento a maior rede social sinaliza que quer se transformar em uma uma empresa de mídia digital de massa, em que a seleção do conteúdo é baseada nas reações de multidões de “usuários” anônimos processadas por aprendizado de máquina/redes neurais [t.c.c. “inteligência artificial”].

O Facebook chama esse processo de “Discovery Engine” [Máquina de Descobertas], porque o algoritmo expele recomendações muito confiáveis sobre qualquer coisa que possa prender a atenção do espectador. O que teremos nesta nova tendência é algo parecido com uma TV que muda de forma o tempo todo, com um número enorme de canais sem contexto, que aparecem e desaparecem refletindo o humor geral da rede em um determinado momento.

Doravante passa a ser muito improvável que você veja alguma coisa do conteúdo de seus amigos.

Tudo indica que é esse o modelo que os usuários mais jovens preferem, e é daí que vai sair a receita que o Facebook vai precisar, agora que as novas regras de privacidade da Apple e as ameaças regulatórias em todo o mundo enchem de incertezas o seu modelo de negócio.

Expressão máxima da Web 2.0

Durante bons quinze anos, as redes sociais – lideradas pelo Facebook, com outras redes a desempenhar um importante papel secundário – dominaram a cultura e a economia da internet. Mas a ilusão de que elas pudessem desencadear ondas de empoderamento democrático e liberar a autoexpressão em todo o mundo logo se desvaneceu quando o Facebook começou a transformar o “gráfico social” de relacionamentos humanos em uma máquina de fazer dinheiro.

Os rivais tombaram à esquerda e à direita [quem não se lembra do Orkut?]. A quantificação das amizades e os botões “curtir” transformaram as relações humanas em uma competição despersonalizada de “métricas”. A intervenção dos algoritmos, quebrando a ordem cronológica das postagens, obrigou as pessoas e, principalmente, organizações políticas, a aumentar o volume de seu discurso, na tentativa de enganar o sistema de avaliação. Com o tempo essa dinâmica se tornou um fator de extremismo, desinformação, discurso de ódio e assédio.

O estilo TikTok não melhora muito os problemas das mídias sociais. As postagens são ainda menos enredadas em uma teia de relacionamento social. Messe ambiente, quanto maior a multidão, mais alto o limiar de atenção para que o discurso seja notado

Portanto a era em que as redes sociais serviam como a experiência primária dos usuários da internet está ficando para trás. Isso também vale para o Twitter, que nunca realmente encontrou um modelo de negócios confiável. Seu futuro não parece muito brilhante.

A governança da Meta agora vê toda a estrutura de rede social do Facebook como uma operação legada, rumo ao ‘descomissionamento’

O grupo vai agora investir em seus aplicativos de mensagens e no chamado ‘metaverso’. O caminho fica livre para quem quiser atender a demanda por redes sociais clássicas, organizadas em ordem cronológica.

Uma visão otimista

Quem lê este blog deve ter percebido minha costumeira postura crítica às redes sociais e a repetição dos mantras de segurança e privacidade. Concordo que frequentemente soo como um proverbial tiozão da segurança/privacidade [existe isso??]. Embora eu encare a discussão desses problemas complexos como uma missão, ela via de regra leva à alienação do leitor ou ouvinte, e está se mostrando cada vez mais contraproducente [além de me trazer muitos problemas na esfera social].

É muito fácil ser cínico e simplesmente assumir que as coisas vão ficar pior do que estão agora. Neste post eu me restrinjo e ofereço uma visão mais humana e otimista sobre a questão. Talvez se torne o início de um novo pacto com meus caros leitores.

Concordo que tem havido uma profunda mudança na cultura “ocidental” nos últimos dez anos, e cerca de um terço de todo o mundo agora está no espaço virtual das mídias sociais (incríveis três bilhões de pessoas!). Mas eu começo a suspeitar que é um erro crer:

  • que esse seja um estado de coisas irreversível, ou, alternativamente,
  • uma espiral descendente em direção à débâcle tecnológica.

Não podemos esperar o pior das pessoas todo o tempo. Porque de qualquer forma elas podem mudar, se recuperar. Só quando você olha para a cultura com o olhar de um antropólogo é que você sai do paroquialismo do seu vilarejo mental e vê as verdades maiores.

Na verdade, dá muito mais trabalho imaginar uma sociedade melhor, porque isso requer ideias reais sobre o que pode ser diferente e como podemos chegar lá. Dizer “as coisas vão ficar do mesmo jeito, mas piores” é muito mais fácil do que dizer “as coisas poderiam ser diferentes e melhores, e aqui está como fazer”.

Portanto

Apesar de seu potencial para se tornar (como já se suspeita que seja) de fato uma ferramenta de propaganda do governo chinês, com base na minha experiência muito limitada vejo que o TikTok parece mais saudável e bem mais estúpido (no sentido de entretenimento insípido e inócuo) do que o Facebook e o Twitter – o que me parece muito bom (o usuário médio do TikTok não parece ter fixações revolucionárias ou violentas).

Nunca me indignei seriamente com algo que eu tenha encontrado nas poucas visitas ao TikTok — ao contrário do Facebook. O Discord parece ainda mais saudável do que qualquer uma daquelas plataformas. Portanto, pode ser que já estejamos a ver surgir um ecossistema mais íntegro.

O próprio fato de o Facebook deixar de ser uma rede social [no sentido estrito da expressão] deixa a arena livre para que outros atores possam agir com mais confiança para oferecer serviços que resgatem aquela sensação de intimidade e pertencimento que as redes sociais ofereciam no início de tudo – e para a qual a demanda certamente continua alta.

Mas para além da questão das plataformas, certos comentaristas [como Ezra Klein] consideram a atual era disruptiva “transitória”, na medida em que o surgimento de outros meios de comunicação sempre foi disruptivo e transitório. No fim de tudo as pessoas se ajustam. Talvez estejamos a caminho de nos tornarmos imunes ao sequestro da nossa atenção, indignação política e do Medo de Ficar Por Fora.

Quanto a mim, certamente me tornei muito bom em resistir à atração desses fenômenos sociais em todos esses anos. Mas poderei ceder ao apelo das redes, se eu puder contar com um ecossistema aberto, seguro e confiável.

~o~

(*) E eu queria realmente acreditar no que escrevi nos últimos cinco parágrafos…

As ‘Notícias’ Não São Boas

Cresci acreditando que acompanhar as “notícias” faz de você um cidadão melhor. Oito anos depois de ter desistido da esgotosfera, essa ideia agora me parece ridícula.

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Estou a falar aqui principalmente sobre acompanhar os noticiários nas TVs comerciais e nas infames redes sociais. Ressalvo que este post não é uma acusação ao jornalismo como um todo. Reconheço que há um grande valor em investir tempo lendo um artigo analítico de 5.000 palavras em uma publicação de alto nível, como por exemplo as excelentes publicações inglesas Unherd, ByLineTimes e suas equivalentes em outros países e línguas, o que eu faço diariamente.

O que descobri nesses anos de exílio das redes sociais é que, se você parar de acompanhar as mídias de baixo nível [Facebook, WhatsApp, CNN, Globo, etc, etc.], mesmo que por apenas um mês, o hábito de consumir notícias vindas desses meios começa a parecer bastante feio e desnecessário, não muito diferente de como um fumante só percebe o cheiro ruim do tabaco quando ele para de fumar.

Nesta postagem uma faço uma pequena lista de algumas coisas que você vai notar se você fizer uma pausa no consumo de lixo informático digital.

A) Alívio na ansiedade

Uma coisa comum que você sente ao desistir da esgotosfera é uma melhora no humor. Seus amigos viciados em smartphones dirão que você é anti social, ou que você enfiou a cabeça na areia. Eles não percebem que o que você pode obter sobre o mundo a partir das “notícias” não chega nem perto de ser uma amostra representativa do que está realmente acontecendo no mundo. Os produtores comerciais de notícias não estão interessados em criar um retrato fiel do mundo. Eles apenas selecionam o que é a) incomum, b) horrível e c) popular. Portanto, a ideia de que você pode ter uma noção significativa do “estado do mundo” assistindo às “notícias” é absurda.

Os editores de jornais populares [isto é, TODOS] exploram nosso viés de negatividade. Evoluímos para prestar atenção ao que é assustador e irritante, mas isso não significa que o medo ou a raiva sejam úteis. Uma vez que você para de assistir, fica óbvio que o objetivo principal das reportagens é agitar e consternar o espectador.

O que aparece no noticiário não é “o portfólio de preocupações da pessoa conscienciosa”. O que aparece é o que vende, e o que vende é o medo e o desprezo por outros grupos de pessoas.

Faça seu próprio portfólio de notícias. Você vai obter melhores informações sobre o mundo de fontes mais profundas – que redigem as noticias, ao invés de “agregá-las”. Noto aqui que, pelos meus padrões, nenhuma publicação brasileira se encaixa nessa matriz [isso inclui o outrora venerável Estadão].

B) Você nunca realiza algo útil assistindo ao noticiário

Se você perguntar a alguém o que eles verdadeiramente realizam assistindo ao noticiário, ou a que conclusões eles chegam, ouvirá noções vagas como: “É nosso dever cívico nos manter informados!” ou “Preciso saber o que está acontecendo no mundo” ou “Não podemos ignorar esses problemas” – nada disso responde ao que foi perguntado.

“Estar informado” soa como uma realização, mas também implica que qualquer informação serve. Para certas pessoas é possível se informar lendo uma tabela de horário de ônibus.

Um mês depois de deixar as “notícias”, você vai perceber que é difícil citar algo útil que foi perdido. Torna-se claro que aqueles anos de acompanhamento das “notícias” não representaram praticamente nada em termos de melhoria na sua qualidade de vida, ou de conhecimentos duradouros, ou sua capacidade de ajudar os outros. E isso sem falar no custo de oportunidade. Imagine se você gastasse o mesmo tempo aprendendo um idioma ou lendo livros e ensaios sobre os mesmos assuntos que eles mencionam nos noticiários.

Você descobrirá que sua abstinência das “notícias” não resultou em eventos políticos piores do que os que já estavam acontecendo, e que coisas como esforços de socorro em desastres ou o combate à fome continuaram sem o seu envolvimento, como sempre. A conclusão é que seu tempo perdido em monitorar o “estado do mundo” na verdade não afetou o mundo e nem mudou nada. Herdamos de algum lugar – talvez da época em que havia apenas uma hora de notícias por dia – a crença de que ter uma consciência superficial das questões mais populares do dia é de alguma forma útil para aqueles mais afetados por elas.

C) Conversas relacionadas a eventos do noticiário = pessoas falando besteiras

Quando você para de fazer o jogo dos produtores comerciais de “notícias” diárias e observa atentamente as pessoas falando sobre os “acontecimentos”, você vai perceber que quase ninguém sabe realmente do que está falando.

Há um abismo extraordinário entre ter uma compreensão funcional de um problema e o olhar superficial que você recebe das mídias populares. Se você se deparar com uma conversa no bebedouro do escritório sobre um assunto que você por acaso conhece muito, você verá as pessoas estão dispostas a falar com ousadia sobre questões sobre as quais nada entendem. Sabemos que é irresistível fazer comentários agressivos e tomar posições duras, mesmo quando estamos errados, e as “notícias” das TVs e do Facebook nos dão a forragem perfeita para isso. Quanto menos você souber sobre um assunto, mais fácil será fazer declarações ousadas sobre ele.

D) Existem maneiras melhores de “ser informado”

Todos nós queremos viver em uma sociedade bem informada. As notícias informam as pessoas, mas quase nunca as informam particularmente bem. Existem muitas fontes de “informação”. A parte de trás do seu frasco de xampu contém “informações”. Em 2022 há muito mais informação por aí do que podemos absorver, então é preciso escolher bem o que merece nosso tempo. As “notícias” fornecem informações em volume quase infinito, mas com profundidade muito limitada, e claramente pretendem nos agitar mais do que nos educar.

Cada minuto gasto consumindo notícias é um minuto em que você fica indisponível para aprender coisas úteis sobre o mundo de outras maneiras. Os brasileiros provavelmente acompanham no Whatsapp e Facebook milhões de horas de cobertura de notícias todos os dias. Isso é uma enorme quantidade de livros não lidos.

Leia três livros sobre um assunto e você saberá mais sobre esse assunto do que 99% do mundo. Se nos preocupamos apenas com a amplitude da informação, e não com a profundidade, não há muita diferença entre “manter-se informado” e “permanecer mal informado”.

E) “Estar preocupado” nos faz sentir como se estivéssemos fazendo algo

As “notícias” são sempre sobre injustiças e catástrofes, e naturalmente nos sentimos desconfortáveis ao ignorar histórias nas quais as pessoas estão sofrendo. Por mais superficiais que os noticiários de TV possam ser, as questões relatadas neles são (geralmente) reais. Muito mais reais do que podem parecer através de uma televisão ou de um smartphone. As pessoas estão sofrendo e morrendo, o tempo todo, e ignorar uma representação desse sofrimento, mesmo uma representação cínica e manipuladora, nos faz sentir culpados.

Então pensamos: “o mínimo que podemos fazer é não ignorar isso”. Então lá estamos nós a assistir à cobertura da tragédia na TV, com os olhos lacrimejantes e com um nó na garganta. Mas o fato é que ficar nesse nível de “preocupação” não vai ajudar ninguém – vai apenas, talvez, aliviar um pouco nossa própria culpa.

E eu me pergunto se há uma espécie de “efeito de substituição” em ação aqui. A sensação, e a falsa crença, de que “pelo menos eu me importo” pode, na verdade, nos impedir de fazer algo concreto para ajudar ou influir nos acontecimentos, porque, ao observar com simpatia, não precisamos confrontar a realidade de que não estamos fazendo absolutamente nada a respeito do que estamos vendo.

Observar os desenvolvimentos de um desastre, mesmo quando não fazemos nada, pelo menos parece um pouco mais compassivo do que desligar. A verdade é que a grande maioria de nós não dará absolutamente nenhuma ajuda às vítimas das atrocidades que acontecem neste mundo, sejam elas televisionadas ou não. E isso é difícil de aceitar em um nível básico de consciência. Mas se pudermos pelo menos mostrar preocupação, neste mundo regido pelas aparências, podemos permanecer não envolvidos sem nos sentirmos não envolvidos.

Esta talvez seja a maior razão pela qual tememos nos desligar das notícias. E também pode ser a melhor razão para fazê-lo.

Notas Sobre o Twitter e a Liberdade de Expressão

Eu não estava interessado no Twitter antes e não estou agora, mas o comentário gerado pela recente mudança na administração do site é muito interessante, e estarei a acompanhar os desenvolvimentos bem de perto.

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Em primeiro lugar, porque é realmente muito engraçado assistir de fora. Cenário: o Twitter, de longe a mais tóxica de todas as plataformas, está sendo vendido para um empreendedor rebelde e imprevisível e os usuários estão surtando porque têm medo de o “Twitter se tornar tóxico”. Não é uma maravilhosa ironia?

Escusado será dizer que as plataformas sociais não podem ser absolutamente livres para todos: a liberdade de expressão sempre esteve sujeita a limites e Elon Musk não parece questionar isso de forma alguma.

Ele apenas entende que as vozes daqueles que foram considerados “deploráveis”, ou “tóxicos”, ou “inaceitáveis” pela elite atual – ainda que o que eles digam esteja dentro dos limites da lei – também têm o direito de serem ouvidas.

Liberdade de expressão

Em minha filosofia pessoal, o direito de falar/escrever/expressar uma opinião, desde que esteja dentro dos limites da lei, supera o direito de qualquer progressista a um ”espaço virtual seguro”. A liberdade de expressão é muito mais importante do que Harry e Meghan se sentirem ameaçados em sua fachada pública. É deveras preocupante que isso tenha se tornado um assunto controverso.

Uma democracia saudável precisa de um debate indisciplinado e o tipo de restrição à expressão pessoal [não se trata de censura pelo fato de não envolver o estado ou o espaço público real] que parece estar acontecendo no Twitter [expulsar Donald enquanto o Talibã pode manter sua conta] está nos afastando disso. O equilíbrio precisa ser restabelecido de alguma forma.

O problema é que a grande massa historicamente excluída agora dispõe de meios poderosos de auto expressão e comunicação. Todos têm agora algo análogo a uma bomba atômica em uma maleta. Para ser totalmente franco, eu mesmo cheguei a flertar com fantasias Butlerianas. Até recentemente eu acreditava que a democratização da computação e seu poder de amplificação da experiência humana tinha sido um erro, que acabou por gerar uma ameaça existencial para a espécie. A solução, portanto, seria o confisco dessa capacidade e a limitação do poder de computação acessível ao usuário comum.

É fácil ver que a “solução” acarretaria problemas ainda maiores, o que faz as palavras de meu estimado correspondente Clive Robinson se destacarem como um verdadeiro axioma: “problemas sociais não podem ser resolvidos pela tecnologia”. Será preciso firmeza institucional e muita educação pública para que seja possível superar este momento delicado da trajetória humana.

Nota lateral: minha própria orientação política mudou nos últimos anos, de centro-esquerda para centro-direita. Vários são os fatores que causaram isso, mas comentários como os de Hillary Clinton sobre os “deploráveis” [sou hétero] não ajudaram a aumentar minha simpatia. Aquilo cristalizou a hipocrisia absoluta do lado em que eu pensava estar – alegando ser tolerante mas ainda abusando e desrespeitando pessoas que pensam diferente. O Twitter de hoje é simplesmente uma manifestação online da atitude mental a partir da qual comentários como aquele floresceram.

Aspectos pouco discutidos

Uma parte desta aquisição industrial que parece ser ignorada em favor das implicações da guerra cultural são os aspectos financeiros. O Twitter é um negócio viável? Será capaz de gerar um lucro substancial para Musk? Não faço ideia.

A outra parte da história que não foi considerada [pelo menos não que eu tenha visto] é a reação dos funcionários progressistas do Twitter. Li em algum lugar que alguns deles chegaram a chorar quando a notícia da aquisição foi divulgada (sim, eu ri). Mas como eles vão se comportar quando Musk estiver totalmente no controle? Eles vão se demitir em massa? Ou eles vão permanecer na empresa e assim minar sua própria agenda? Elon vai reequipar toda a organização com pessoas de outra matriz ideológica?

Me parece que quando Elon Musk insiste na questão da ‘liberdade de expressão’ o que ele quer dizer realmente é que “o Twitter favoreceu demais a Elite progressista, e eu não vou mais fazer isso”. É possível argumentar que a chamada Elite progressista é servida por verdadeiras ‘guildas’ para impor sua posição de dominância – as guildas, neste caso, sendo instituições como a CNN, a Rede Globo, e as Mídias Sociais, além dos sumos sacerdotes da intelligensia. A compra do Twitter por alguém aparentemente “fora da Elite” tem, portanto, uma desconfortável sensação de deslocamento.

De fato, a atmosfera pública exala, em pleno 2022, uma alarmante fragrância de fin-de-siècle oitocentista.

Da Wikipedia sobre o fin-de-siècle: O principal tema político da época era a revolta contra o materialismo, o racionalismo, o positivismo, a sociedade burguesa e a democracia liberal. A geração do fin-de-siècle apoiou o emocionalismo, o irracionalismo, o subjetivismo e o vitalismo, enquanto a mentalidade da época via a civilização como estando em uma crise que exigia uma solução massiva e total.

Liberalismo versus coletivismo

Além disso, a própria ideia contemporânea [notadamente nos EUA] de que os marxistas são “liberais” – uma filosofia fantástica que tem sido construída pelas melhores mentes acadêmicas do Ocidente por décadas – é uma falácia. No século passado os marxistas foram perseguidos, cancelados, odiados por causa das coisas horríveis que os marxistas de todo o mundo faziam.

Tanto para revidar quanto para formular um rótulo aceitável para se adaptar ao sistema político [ou mesmo para se esconder], eles inventaram uma “nova filosofia”, na verdade apenas uma regurgitação do marxismo, e a chamaram de “liberalismo progressista” como se fosse simplesmente um novo ramo do estimado liberalismo clássico.

É claro que não era nada disso – e qualquer um que se desse ao trabalho de examinar perceberia rapidamente que era a total antítese do liberalismo. Era coletivismo versus individualismo; governo grande versus governo pequeno; resultados iguais versus oportunidades iguais. E o mais importante de tudo, propagou-se um certo “imperativo moral” de violar os direitos de certas pessoas em nome de um objetivo indefinível de “justiça social” [já ouvimos isso antes?].

Infelizmente, o estratagema funcionou. A rede de professores marxistas em universidades de todos os países começou a alardear o “liberalismo progressista” como o novo eufemismo para o marxismo. Para os de fora, soava como liberalismo. Mas, as coisas sempre desandam quando, por ideologia, a palavra ‘justiça’ aparece na frente da palavra ‘social’. O resultado é sempre a negação do que se pretende: “NÃO Liberalismo” [iliberalismo] e “injustiça”.

Todos os totalitários precisam, para atingir seus objetivos, mentir perpetuamente. Do contrário seria obviamente impossível concordar com os objetivos que eles realmente querem atingir. Até cerca de 2010, havia um equilíbrio entre as pessoas que amavam a liberdade versus aqueles que queriam um governo draconiano em seu alcance social, com as diferenças geralmente sendo nuanças. Hoje, a divisão é quase perfeita – com amantes da liberdade e os progressistas cripto-totalitários em lados claramente opostos.

Vale a pena notar que Milton Friedman e F. A. Hayek, ambos odiados pelos “liberais progressistas” de hoje, que os consideram cães raivosos da direita, se recusaram a desistir do termo “liberal” em favor do termo “conservador”, referindo-se a si mesmos como “liberais clássicos”. F. A. Hayek chegou a escrever um artigo chamado “Por Que Não Sou Conservador” em um esforço para reabilitar o termo, apontando que a raiz etimológica da palavra liberal é liberdade.

Esse Estranho Capitalismo Virtual

A indústria de Tecnologia, Informação e Comunicação (TIC) tem uma questão interessante, e os economistas profissionais aparentemente não gostam de falar sobre ela.

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Em praticamente todos os setores da economia o preço de um bem sobe mais rápido do que sua utilidade, um fenômeno intrinsecamente “inflacionário”. Portanto, há pouco sentido em adiar uma compra – logo, compre um apartamento ou casa o mais cedo possível.

Agora considere os computadores, um item cujo desempenho (utilidade) historicamente dobrou a cada 18 meses, segundo a progressão conhecida como Lei de Moore. No entanto, o preço deles em moeda fiduciária permaneceu relativamente estável. Ou seja, R$ 1.500 sempre deram acesso a um moderno laptop para consumo ou negócios, ano após ano.

Enquanto isso, a maioria das outras coisas sofria com uma inflação da moeda fiduciária de cerca de 3% ao ano. Portanto, depois de uma década, o que custava $100 agora fora reajustado para ~ $134. Note que com a economia pagando, na melhor das hipóteses, cerca de 2% de rendimento, você só teria ~ $125 guardados na poupança nesse mesmo período.

Assim, quando você quisesse comprar um laptop de ponta, seus $ 1.500 no banco, depois de uma década, teriam chegado a $1.875 ($375 a mais). Contudo, o computador seria 100 vezes mais poderoso. Do ponto de vista econômico, isso representa uma deflação muito séria e muito prejudicial. Portanto, pelas normas da economia clássica, a industria de TIC não deveria existir – nem qualquer outra indústria de eletrônicos de consumo.

O capitalismo virtual

Esse problema estava se espalhando para o mercado automotivo, devido à eletrônica embarcada, o que estava se mostrando prejudicial de várias maneiras.

No entanto, e esse é o novo fenômeno, alguns fabricantes automotivos agora não mais “vendem” carros aos consumidores. Em em vez disso eles agora usam expressões como “buy back” ou “trade up“- uma espécie de leasing rebatizado. Em essência, fazem você pagar uma taxa de uso mensal indefinidamente. Eles apenas te dão outro carro, com cada vez mais componentes eletrônicos, a cada três anos – o que ainda é efetivamente deflacionário pelas regras dos economistas clássicos.

Alguns fabricantes de carros de ponta nem tentam esconder o fato de que os seus produtos vêm com todos os recursos possíveis já embutidos – só que desativados. Se você pagar um pouco a mais a cada mês, eles vão permitir que você os use, bastando apenas uma atualização remota do cṍdigo.

Você não é proprietário legítimo do carro [arrisco dizer que, nessas condições, dar certos comandos de voz em tons mais ríspidos poderia trazer apuros jurídicos].

Além disso, como reza o contrato [que você talvez não tenha lido], você precisa também dar a eles a sua alma, em forma de um dilúvio de informações pessoais.

Um sabor de mercantilismo

As velhas regras da economia estão se tornando menos relevantes à medida que somos forçados a uma economia rentista da qual não se pode escapar. Veja assim o futuro próximo: perca sua renda por algum motivo e eles, remotamente, desligam tudo o que você achava que possuía. Mesmo assim todas as coisas ao seu redor ainda vão continuar a espionar você minuto a minuto, dia a dia – porque para se desconectar é preciso usar uma das funcionalidades que eles desativaram remotamente. Nada como a proverbial “liberdade capitalista”.

De qualquer forma, em um futuro próximo certamente haverá alguma cláusula legal para fazer você pagar um montante adicional para ser excluído da vigilância.

Pelo que me disseram, as telecoms americanas chegaram muito perto desse modelo, ou de algo que serviria de trampolim para ele. O usuário pagaria pelo plano de conectividade – em oposição a um modelo grátis baseado em anúncios – mas mesmo assim as empresas o espionariam e venderiam os dados coletados.

Se você quisesse o plano “sem vigilância”, a ideia era que você teria que pagar mais, com todos os tipos de outros penduricalhos, etc., totalizando algo como $30/mês a mais – eles ainda iriam espionar e coletar dados, mas não “vendê-los” enquanto você continuasse a pagar o “resgate” [como em um sequestro].

Não ficou claro o que eles queriam dizer com “não vender” e não havia garantia de que eles não venderiam todos os seus dados privados em uma data posterior – aparentemente alguém decidiu que o mercado ainda não estava pronto para essa opção, “ainda”.

Post scriptum

O capitalismo tem perdido também outras dimensões. Acabamos de ver aqui como o capitalismo está rapidamente se dissociando da ideia de “propriedade”.

Mas nem é preciso uma análise atenta para ver que o conceito de concorrência está sendo pulverizado por monopólios cada vez mais poderosos. Noções mais abstratas e difusas, como virtude, pudor, modéstia e mérito, tão sagradas à clássica moral capitalista protestante, já foram extintas pela brutal economia da atenção e pelo imediatismo narcisista das redes sociais, em que é possível encontrar completos imbecis a fazer fortunas da noite para o dia, e a ditar o ethos da época [o que alguns chamam de zeitgeist].

Eticamente, o capitalismo está em frangalhos, desta vez muito mais do que esteve em qualquer período da história, e a marcha de sua insensatez parece apenas se acelerar. O capitalismo se parece cada vez mais com o seus antecessores primitivos, o feudalismo e o mercantilismo. A social-democracia de tempos atrás, praticamente extinta, me parece agora um regime muito mais sofisticado e justo – e em 1989 parecia, de fato, ter vencido a História.

Realmente, só se dá valor ao que se perde.