Não Tenha Pena da Wikipédia

A onipresente Wikipedia, nossa enciclopédia on-line sem fins lucrativos, está mais uma vez com a caneca na mão, a pedir aos seus leitores que doem qualquer quantia. Você provavelmente já viu um de seus banners no topo alguma página.

Imagem: Vox Leone

Sabemos que a independência financeira da WMF [Wikimedia Foundation – uma organização sem fins lucrativos com sede em São Francisco] claramente não está em risco. Então, o que está acontecendo? Uma resposta possível é que a WMF acha que ter dinheiro sobrando nunca é demais – claro, para a eventualidade de um dia chuvoso.

Equidade de Conhecimento

A WMF no entanto alega que tem altos planos globais para “tornar-se a infraestrutura essencial do ecossistema do conhecimento livre” até 2030. Ela diz que quer criar “equidade de conhecimento” – um mundo onde as pessoas em todos os lugares terão tanto acesso à informação em sua própria língua quanto os cidadãos do primeiro mundo – e que isso exigirá aumentos orçamentários contínuos. A certeza é que nesse tipo de empreitada ela sabe que pode contar com uma torneira de dinheiro sempre à disposição na Wikipedia – construída pelo trabalho de voluntários – que pode abrir quando quiser.

E, assim, as pessoas em países pobres como a Índia, ou em países atingidos pela pandemia, como Argentina e Uruguai, muitas das quais hoje temem pela estabilidade de suas vidas, pela vida de seus entes queridos e por seus meios de subsistência, são informadas, através de enormes banners vermelhos, de que a WMF precisa muito de uma doação deles hoje, para proteger a independência da Wikipedia

Banner (este exibido para os leitores da Índia) – Imagem: Wikimedia Commons

No banner acima lê-se:

Olá leitor da Índia. Parece que você usa muito a Wikipedia, e isso é ótimo! Este é o segundo apelo que nós exibimos para você. É embaraçoso, mas neste domingo nós precisamos de sua ajuda. Nós não temos pessoal de vendas. Dependemos de doações de leitores excepcionais, mas menos de 2% doa. Se você doar apenas 150 rúpias, ou qualquer coisa que puder neste domingo, a Wikipedia pode continuar a prosperar. Obrigado.

Esses banners se tornaram muito lucrativos para a Wikimedia Foundation. Todos os anos, a ONG adiciona dezenas de milhões de dólares ao seu “baú de guerra”. Após uma década de angariação de fundos em escala profissional, a fundação já havia acumulado US$ 400 milhões até março de 2022. A Wikimedia criou ainda um outro fundo, administrado pela Tides Foundation, que agora tem em caixa bem mais de US$ 100 milhões. No início a Fundação queria atingir esse número em um prazo de dez anos, mas veio a descobrir que havia superado a meta em apenas cinco. Em 2021, foram arrecadados US$ 162 milhões em recursos, um aumento de 50% em relação ao ano anterior. No entanto, os custos de funcionamento da Wikipédia propriamente representam uma pequena fração do valor total arrecadado pela Fundação Wikimedia a cada ano.


Eu já doei à Wikipedia movido em parte pelo coração mole mas também por puro idealismo, até começar a questionar mais profundamente. Será que a flagrante patrulha mental da Wikipedia contra acadêmicos e políticos dissidentes — “que pensam errado”, bem como os tantos episódios de falsificação deliberada da história, merecem algum apoio? Eu vejo claramente como a Wikipedia pode ser um alvo fácil para extremistas abrigados como “editores”.

É uma pena que tantas contribuições feitas por especialistas genuínos sejam perdidas pela recusa da Wikipedia em disciplinar seus editores rebeldes [ou talvez isso seja proposital e não uma falha do sistema]. Dito isso, eu entendo a necessidade de filtrar algumas coisas – mesmo a academia, cientistas e historiadores agora confessam que estão adaptando sua produção para não ferir susceptibilidades.

O que eu acho

Minha opinião pessoal é que as pessoas que valorizam a liberdade de expressão e a imparcialidade têm que manter um olhar crítico sobre a Wikipédia. Jimmy Wales no início pareceu ter ideais nobres para o site. Ele evitou a comercialização do site e assim abriu mão de uma receita potencial de dezenas de bilhões de dólares. A reserva de US$ 400 milhões é pouco em comparação com o que a Wikipedia poderia valer no mercado aberto. Mas Wales permitiu que o site fosse comprometido em sua imparcialidade; não por dinheiro, mas por ideologia política.

Wales fica facilmente irritado com com as críticas ao patente viés esquerdista da Wikipedia. Mas quando o site permite que veículos reconhecidamente partidários, como o New York Times, MSNBC, CNN, NPR, sejam usados como fontes autorizadas para confirmar fatos, mas não a Fox News ou o New York Post, o viés é óbvio [noto aqui que não faço juízo de valor nem tenho preferência por nenhum dos meios citados]. Veículos como Wikipedia e BBC, que estão livres de pressões comerciais, estão em uma posição única, e poderiam ser uma verdadeira força para o bem se moderassem as posições extremistas tanto da esquerda quanto da direita, fornecendo uma apresentação equilibrada dos fatos.

Convocar os usuários para “defender a independência da Wikipédia” está muito longe da voz monolítica e onisciente da razão que os leitores de longa data da Wiki esperam ouvir. Ter um cafofo para um dia de chuva é uma coisa. O desnecessário desvio de finalidade é outra.

Se a “equidade do conhecimento” é realmente o que eles almejam, a monetização convencional da plataforma provavelmente não é a maneira de fazê-lo. Nada é mais cruel do que um paywall onde, antes, havia uma riqueza inesgotável de informação, disponível para acessar livremente.

A Síndrome de Leonardo

Na blogosfera esta semana encontro um interessante post de onde tirei o título deste artigo. O tema de fundo é a procrastinação, algo com que a grande maioria das pessoas pode se identificar.

Vitruvian Man - arte
Imagem: Pexels

O post ao qual me refiro faz comentário sobre o livro de Peter Burke, The polymath: a cultural history from Leonardo da Vinci to Susan Sontag. Em uma passagem da obra o autor sustenta a tese, já defendida por outros, de que as aventuras criativas de Leonardo Da Vinci foram na verdade fracassos.

Exemplos de seus fracassos incluiriam não ter sucesso na quadratura do círculo [o que é geometricamente impossível], e em vários projetos de engenharia que não funcionaram – como uma besta gigante e uma máquina voadora; ter mal-entendido vários aspectos do coração; ter feito desenhos com tintas experimentais que resultaram em lenta degradação de algumas de suas pinturas.

Mesmo sua primeira encomenda registrada como pintor independente – um retábulo para a Capela de São Bernardo em 1478 – ele não conseguiu concluir, apesar de receber um adiantamento em dinheiro de 25 florins para isso. Muitos de seus contemporâneos registraram que ele não cumpria os prazos ou nem mesmo terminava projetos — como nunca ter terminou uma estátua equestre encomendada por Francesco Sforza.

O ensaio continua a explicar como o pensamento e o trabalho de Leonardo estavam fora das disciplinas da época (e sua abordagem ainda está fora de muitas que são ensinadas hoje), embora isso fosse uma desvantagem para sua carreira na época. Leonardo não era o “profissional sério”. Ele pegava algumas ideias e brincava com elas.

Um sentimento familiar

A esta altura começo a suspeitar que a Síndrome de Leonardo é a responsável pelas minhas longas noites. Com a Internet sendo tão vasta, há inúmeras coisas para experimentar e hackear [no sentido de ‘desmontar para conhecer o funcionamento’], e tenho inúmeros projetos inacabados guardados em meus discos rígidos [na verdade uso SSD’s]. Não sou um acumulador no sentido típico de guardar jornais velhos para a posteridade – e de fato sou um minimalista. Mas quando se trata da minha vida digital, é difícil resistir à facilidade de poder guardar montanhas de ‘jornais’ em forma de bits.

Leonardo ficaria paralisado pela web moderna. De certa forma sou como um renascentista, reunindo em meus escaninhos pequenos trechos de código que um dia podem ser úteis. Meus “favoritos” estão transbordando de URLs interessantes que pretendo revisitar algum dia. Eu sou um acumulador digital que procrastina muito em certos períodos. Não sei se preciso tomar providências para mudar, ou se isso é uma resposta natural à vastidão da web e a única maneira sensata de abordá-la.

Terminar o serviço é uma verdadeira dor

Em algum momento do projeto, chegamos à parte em que as coisas divertidas já foram feitas. Já aprendemos praticamente tudo o que foi possível com o exercício, e o trabalho está “90%” acabado.

Esses últimos 10%, no entanto, são uma ladeira íngreme, e muitas, muitas pessoas simplesmente acabam por abandonar o projeto nessa fase. Em muitos casos não há problema, se o objetivo principal era aprender e realmente não há “tração de mercado” suficiente para justificar a conclusão do projeto.

Se houver um requisito formal para concluí-lo (como, digamos, um contrato, com sua assinatura), é claro que os 10% precisam ser concluídos, não importa quão chato isso seja.

Há até uma piada no meio: “90% do projeto é concluído em 10% do tempo. 10% do projeto é concluído em 90% do tempo.” Já notou como, quando um novo prédio está sendo construído na vizinhança ele parece ficar “completo” em um tempo surpreendentemente curto? Contudo, quase sempre esse momento está apenas na metade do tempo da construção, e 100% do tempo tomado pelo projeto até aqui deverá se repetir antes que as portas se abram.

Isso porque fazer o exterior e a estrutura é simples e pode ser feito por praticamente qualquer pessoa. Alvenaria, janelas, portas, telhados, etc., são habilidades importantes, mas não extremamente especializadas.

O interior, porém, requer muita habilidade. Você não pode simplesmente trazer um martelador meia-colher. Você precisa de carpinteiros e marceneiros experientes e pintores bem remunerados. Essas pessoas são mais difíceis de agendar e não costumam apressar o trabalho. O resultado do trabalho deles é o que as pessoas verão de perto, todos os dias, então precisa de muito polimento e tem que ser robusto.

O mesmo com qualquer produto

No momento(*) estou escrevendo uma interface para padronizar a entrada de ‘prompts’ e parâmetros em plataformas como ‘Stable Diffusion’. Provavelmente o trabalho já estava 90% completo na semana passada, mas acontece que estabeleci um roteiro de teste bastante robusto para ele, e não consigo parar de testar. Estou encontrando bugs em minha implementação (sempre encontro), e estou corrigindo-os à medida que avanço. Também, como sói acontecer, estou sempre a encontrar “pequenas coisas” que esqueci de implementar.

Assim que eu tiver tudo funcionando para minha satisfação – e se achar que é de interesse geral, detalharei neste espaço.

(*)Muitas coisas chatas, mas isso significa que não preciso me preocupar com comunicação e marketing, muito críticos (e arriscados), que deixo aos parceiros mais habilitados.

De volta a Leonardo

Eu entendo o ponto do autor do citado blog, bem como o do formulador original da crítica, Peter Burke, talvez porque, como eles, eu também não acredite no mito do Superdotado Sobrenatural. A inteligência no fundo é um artefato cultural e precisa ser associada a outros atributos para levar ao sucesso. Ninguém, mesmo os gênios, tem uma visão privilegiada do Todo. Toda ciência e técnica é fruto de trabalho árduo.

Mesmo assim, os argumentos dos detratores são bastante injustos. Em favor de Leonardo, eu devo dizer ele tirava ideias de qualquer lugar – mas não apenas ideias que estavam no “cânone” de uma disciplina, e isso por si só é um portento admirável. Sobre fazer experimentos com tintas também não considero uma falha de caráter, pelo contrário. É, na verdade, um experimento que eu chamaria de audacioso – e de longo prazo. Sobre entender mal vários aspectos do coração, ele descobriu/teorizou como a válvula aórtica e seus folhetos funcionavam de uma forma que se mostrou correta – embora ele estivesse errado sobre a circulação sanguínea em geral.

Mona Lisa – obra inacabada

Não sei. Ele trabalhou nela por quatro anos, levando-a para todos os lugares onde ia para não ter que parar, e se ela estiver realmente inacabada pode ser simplesmente porque a mão direita do mestre estava começando a paralisar. Há mais a ser dito sobre o perfeccionismo na Mona Lisa do que a síndrome de Leonardo.

Leonardo definitivamente começou muito mais do que ele podia terminar (decepcionando muitos clientes, por certo), e tinha um certo auto engrandecimento em relação ao que ele dizia que podia fazer, mas os registros dos fatos não são muito precisos.

No fim de tudo, ele é lembrado porque, na verdade, tinha um conjunto muito grande de ideias detalhadas, desenhos, planos e realizações. A maioria de nós adoraria ter criado uma obra de arte tão inacabada quanto a Mona Lisa.


Leitura adicional recomendada

Burke, P. (2021) The polymath: a cultural history from Leonardo da Vinci to Susan Sontag. First published in paperback. New Haven London: Yale University Press.

Facebook Recua na TikTokização

No último post [27/07] nós discutimos – com a contribuição de estimados leitores – a transformação ora empreendida pelo Facebook(*) no sentido de imitar o TikTok, o que vem a significar o fim das redes sociais como as conhecemos.

Imagem: Pexels.com

Aconteceu, porém, um evento inesperado ontem [28/07], em que a holding Meta anunciou algumas pedaladas para trás em suas metas [trocadilho infame pero inevitable]. Reproduzo abaixo, destacando em cor diferente, a abordagem do site The Verge:

O Instagram vai recuar em algumas mudanças recentes no produto após uma semana de críticas intensas, disse a empresa hoje [28/07] . A versão de teste do aplicativo – que abre em tela cheia para fotos e vídeos – será desativada nas próximas duas semanas. O Instagram também reduzirá o número de postagens recomendadas, à medida que trabalha para melhorar seus algoritmos.

“Estou feliz por termos arriscado – se não falharmos de vez em quando, não estamos pensando grande o suficiente ou sendo ousados o suficiente”, disse o chefe do Instagram, Adam Mosseri, em entrevista. “Mas nós definitivamente precisamos dar um grande passo para trás e nos reagrupar. Quando aprendermos melhor, então voltaremos com alguma nova ideia ou iteração. Vamos trabalhar nisso.”

As mudanças ocorrem em meio à crescente frustração do usuário com uma série de mudanças projetadas no Instagram para ajudá-lo a competir melhor com o TikTok e navegar na mudança mais ampla verificada no comportamento do usuário, para mais longe da fotografia, voltando a sua atenção aos vídeos. Esse tipo de redesenho geralmente provoca a ira de usuários resistentes à mudança. Todavia, neste caso, a insatisfação notável foi confirmada pelos próprios dados internos do Instagram, disse Mosseri. A tendência de os usuários assistirem a mais vídeos é real e veio antes do TikTok, disse ele.

Mas é claro que as pessoas realmente não gostaram das mudanças de design do Instagram. “As pessoas estão frustradas com as recentes modificações no design e o feedback trazido pelos dados não é bom”, disse ele. “Então, acho que precisamos dar um grande passo para trás, reagrupar e descobrir como vamos querer seguir em frente”.

A empresa também planeja mostrar aos usuários menos recomendações de algoritmo. Na quarta-feira [27/07], o CEO da Meta, Mark Zuckerberg, disse que postagens e contas recomendadas atualmente representam cerca de 15% do que você vê quando navega no Facebook, com uma porcentagem maior no Instagram.

Até o final de 2023, esse número será de cerca de 30%, disse Zuckerberg. Mas o Instagram reduzirá temporariamente a quantidade de postagens recomendadas, enquanto trabalha para melhorar suas ferramentas de personalização. Mosseri deixou claro que o recuo anunciado hoje não é permanente.

~o~

(*) No post de quarta-feira eu não mencionei especificamente o Instagram, assim como não o fiz no título de hoje, em parte porque eu estou acostumado a me referir ao grupo Meta genericamente como “Facebook”. De fato é o Instagram que está a atrair uma maior barragem de fogo no momento, principalmente nos mercados avançados.

As redes da Meta compartilham a árvore decisória e a orientação tecnológica, o que significa que os nomes das duas redes são um tanto quanto intercambiáveis quando o assunto é o uso algoritmos para recomendação de conteúdo.

Uma rápida análise final

Parece haver uma obsessão envolvida em todo esse negócio de o Facebook tentar perseguir o mesmo mercado que o TikTok – os jovens.

Dado que nos países mais ricos – e no Brasil também – a demografia mostra claramente que há uma forte tendência ao envelhecimento da população, a estratégia do Facebook faz pouco sentido. Você acaba alienando os dois campos, tentando ser o que você não é. De um ponto de vista racional, ele deveria ter continuado com foco na realidade do mercado que tem.

A juventude e a moda sempre foram inconstantes e a marcas Facebook e Instagram hoje em dia são efetivamente um veneno para os jovens, desprezadas, ridicularizadas. Isso não vai mudar tentando torná-lo um outro TikTok. É simplesmente tarde demais.

Tentando esconder o elefante-na-sala

Zuckerberg diz que apenas 15% do conteúdo do Facebook/Instagram é originário de recomendação de algoritmos, e que o objetivo é chegar a 30% no fim do ano que vem. Isso é claramente uma falsidade, uma vez que obviamente não inclui a contribuição de terceiras partes para as recomendações de conteúdo – e nem o que é medido por observadores independentes. Lembro que para ser igual ao TikTok – e pode apostar que Zuckerberg quer ser – é necessário 100% de conteúdo recomendado e 0% de conteúdo social.

Final

A Meta não vai simplesmente desistir das mudanças anunciadas para Facebook/Instagram. A Corporação vai agora retomar a implementação das mudanças em um tom menos estridente, com um pouco mais de vagar, a conta-gotas – como sempre fez.

Já passamos do ponto onde a Meta poderia escolher sua estratégia. Agora o único caminho a seguir é ir em frente com as mudanças. Parar agora significa colapso total do negócio.

Eu ando particularmente contente com a possibilidade da restauração dos princípios originais das redes sociais [don’t be evil!], com a saída/eliminação do grande monopolista e a chance de participação de novas empresas, ideias e visões.

O que foi dito no post de quarta-feira, continua válido, e deverá ser implantado em um perfil temporal mais longo. Não terei que esperar muito — não estou ficando mais jovem. Com base na experiência anterior posso dizer que, se tiver recursos, no final de 2023 a Meta estará fazendo exatamente o que planejou fazer.

TikTokização do Facebook Marca o Fim da Era das Redes Sociais

A quinta-feira passada [21/07] poderá entrar para os anais da história como o início do fim da era das redes sociais, que deram o tom para o crescimento da internet desde o início do século. A estreia do ‘redesign’ do Facebook para ficar mais parecido com o TikTok deixa para trás a ênfase da rede no aspecto social.

Imagem: Pexels.com

A explosão do modelo das redes sociais foi uma decorrência do aparecimento e adoção quase universal do smartphone. No início, manter contato com amigos e compartilhar experiências era o centro de tudo o que as pessoas queriam fazer online.

No novo cenário que se desenha, a experiência online tiktokizada vai passar a girar em torno do que milhões de estranhos ao redor do mundo desejam e aprovam – completamente mediada por algoritmos. Com esse movimento a maior rede social sinaliza que quer se transformar em uma uma empresa de mídia digital de massa, em que a seleção do conteúdo é baseada nas reações de multidões de “usuários” anônimos processadas por aprendizado de máquina/redes neurais [t.c.c. “inteligência artificial”].

O Facebook chama esse processo de “Discovery Engine” [Máquina de Descobertas], porque o algoritmo expele recomendações muito confiáveis sobre qualquer coisa que possa prender a atenção do espectador. O que teremos nesta nova tendência é algo parecido com uma TV que muda de forma o tempo todo, com um número enorme de canais sem contexto, que aparecem e desaparecem refletindo o humor geral da rede em um determinado momento.

Doravante passa a ser muito improvável que você veja alguma coisa do conteúdo de seus amigos.

Tudo indica que é esse o modelo que os usuários mais jovens preferem, e é daí que vai sair a receita que o Facebook vai precisar, agora que as novas regras de privacidade da Apple e as ameaças regulatórias em todo o mundo enchem de incertezas o seu modelo de negócio.

Expressão máxima da Web 2.0

Durante bons quinze anos, as redes sociais – lideradas pelo Facebook, com outras redes a desempenhar um importante papel secundário – dominaram a cultura e a economia da internet. Mas a ilusão de que elas pudessem desencadear ondas de empoderamento democrático e liberar a autoexpressão em todo o mundo logo se desvaneceu quando o Facebook começou a transformar o “gráfico social” de relacionamentos humanos em uma máquina de fazer dinheiro.

Os rivais tombaram à esquerda e à direita [quem não se lembra do Orkut?]. A quantificação das amizades e os botões “curtir” transformaram as relações humanas em uma competição despersonalizada de “métricas”. A intervenção dos algoritmos, quebrando a ordem cronológica das postagens, obrigou as pessoas e, principalmente, organizações políticas, a aumentar o volume de seu discurso, na tentativa de enganar o sistema de avaliação. Com o tempo essa dinâmica se tornou um fator de extremismo, desinformação, discurso de ódio e assédio.

O estilo TikTok não melhora muito os problemas das mídias sociais. As postagens são ainda menos enredadas em uma teia de relacionamento social. Messe ambiente, quanto maior a multidão, mais alto o limiar de atenção para que o discurso seja notado

Portanto a era em que as redes sociais serviam como a experiência primária dos usuários da internet está ficando para trás. Isso também vale para o Twitter, que nunca realmente encontrou um modelo de negócios confiável. Seu futuro não parece muito brilhante.

A governança da Meta agora vê toda a estrutura de rede social do Facebook como uma operação legada, rumo ao ‘descomissionamento’

O grupo vai agora investir em seus aplicativos de mensagens e no chamado ‘metaverso’. O caminho fica livre para quem quiser atender a demanda por redes sociais clássicas, organizadas em ordem cronológica.

Uma visão otimista

Quem lê este blog deve ter percebido minha costumeira postura crítica às redes sociais e a repetição dos mantras de segurança e privacidade. Concordo que frequentemente soo como um proverbial tiozão da segurança/privacidade [existe isso??]. Embora eu encare a discussão desses problemas complexos como uma missão, ela via de regra leva à alienação do leitor ou ouvinte, e está se mostrando cada vez mais contraproducente [além de me trazer muitos problemas na esfera social].

É muito fácil ser cínico e simplesmente assumir que as coisas vão ficar pior do que estão agora. Neste post eu me restrinjo e ofereço uma visão mais humana e otimista sobre a questão. Talvez se torne o início de um novo pacto com meus caros leitores.

Concordo que tem havido uma profunda mudança na cultura “ocidental” nos últimos dez anos, e cerca de um terço de todo o mundo agora está no espaço virtual das mídias sociais (incríveis três bilhões de pessoas!). Mas eu começo a suspeitar que é um erro crer:

  • que esse seja um estado de coisas irreversível, ou, alternativamente,
  • uma espiral descendente em direção à débâcle tecnológica.

Não podemos esperar o pior das pessoas todo o tempo. Porque de qualquer forma elas podem mudar, se recuperar. Só quando você olha para a cultura com o olhar de um antropólogo é que você sai do paroquialismo do seu vilarejo mental e vê as verdades maiores.

Na verdade, dá muito mais trabalho imaginar uma sociedade melhor, porque isso requer ideias reais sobre o que pode ser diferente e como podemos chegar lá. Dizer “as coisas vão ficar do mesmo jeito, mas piores” é muito mais fácil do que dizer “as coisas poderiam ser diferentes e melhores, e aqui está como fazer”.

Portanto

Apesar de seu potencial para se tornar (como já se suspeita que seja) de fato uma ferramenta de propaganda do governo chinês, com base na minha experiência muito limitada vejo que o TikTok parece mais saudável e bem mais estúpido (no sentido de entretenimento insípido e inócuo) do que o Facebook e o Twitter – o que me parece muito bom (o usuário médio do TikTok não parece ter fixações revolucionárias ou violentas).

Nunca me indignei seriamente com algo que eu tenha encontrado nas poucas visitas ao TikTok — ao contrário do Facebook. O Discord parece ainda mais saudável do que qualquer uma daquelas plataformas. Portanto, pode ser que já estejamos a ver surgir um ecossistema mais íntegro.

O próprio fato de o Facebook deixar de ser uma rede social [no sentido estrito da expressão] deixa a arena livre para que outros atores possam agir com mais confiança para oferecer serviços que resgatem aquela sensação de intimidade e pertencimento que as redes sociais ofereciam no início de tudo – e para a qual a demanda certamente continua alta.

Mas para além da questão das plataformas, certos comentaristas [como Ezra Klein] consideram a atual era disruptiva “transitória”, na medida em que o surgimento de outros meios de comunicação sempre foi disruptivo e transitório. No fim de tudo as pessoas se ajustam. Talvez estejamos a caminho de nos tornarmos imunes ao sequestro da nossa atenção, indignação política e do Medo de Ficar Por Fora.

Quanto a mim, certamente me tornei muito bom em resistir à atração desses fenômenos sociais em todos esses anos. Mas poderei ceder ao apelo das redes, se eu puder contar com um ecossistema aberto, seguro e confiável.

~o~

(*) E eu queria realmente acreditar no que escrevi nos últimos cinco parágrafos…

Aborto: Histórico na Web Usado para Incriminar Mulheres

Com a recente rejeição da decisão ‘Roe v. Wade’ pela Suprema Corte dos EUA, o tema da privacidade reprodutiva ganha dimensão cada vez maior no debate público.

Imagem: Pexels

Espero que meu esforço em tratar do assunto com objetividade e sensibilidade neste post tenha resultado em algo aceitável e útil.

Pesquisadores de Segurança & Privacidade têm alertado há tempos que o histórico de atividade na internet pode ser usado para processar mulheres que um dia chegaram a procurar aborto. A julgar pelos fatos, os pesquisadores foram conservadores em sua previsão, pois, na verdade, isso já teria acontecido, segundo uma reportagem do Washington Post de 2015.

De acordo com o artigo, uma mulher de Indiana recebeu uma sentença de 20 anos de prisão (link em inglês) com base, em parte, nas mensagens de texto que ela enviou (embora essa condenação depois tenha sido anulada).

O caso provocou reações em vários países ao redor do mundo. Uma organização que encaminha mulheres para o procedimento de aborto em países com leis menos restritivas diz na reportagem do Post que eles agora passaram a usar aplicativos de mensagens criptografadas, como o Signal, além de redes virtuais privadas (VPN), para minimizar as pegadas de suas pesquisas na web.

O site MSN reporta que em alguns casos ao longo dos anos, “promotores americanos usaram mensagens de texto e pesquisas online como provas contra mulheres enfrentando acusações criminais (link em inglês) relacionadas com o fim de suas gravidezes”. Diz o MSN:

Apesar da crescente preocupação de que a intrincada rede de dados coletados por aplicativos de fertilidade, empresas de tecnologia e corretores de dados possam ser usados para provar uma violação das restrições ao aborto, na prática a polícia e os promotores já se serviram de dados mais facilmente acessíveis – coletados de mensagens de texto e pesquisas do histórico de navegação em telefones e computadores. Esses registros digitais das vidas das pessoas comuns às vezes são entregues voluntariamente, ou então obtidos com um mandado judicial, e têm fornecido um tesouro de informação para as agências de aplicação da lei. “A realidade é que usamos nossos telefones para tudo hoje em dia”, disse Emma Roth, advogada do National Advocates for Pregnant Women. “Existem muitas, muitas maneiras pelas quais a repressão policial pode analisar a jornada de alguém em busca de um aborto através dos numerosos sistemas de vigilância digital…”

As mulheres são punidas por interromper a gravidez há anos. Entre 2000 e 2021, mais de 60 casos nos Estados Unidos envolveram alguém sendo investigado, preso ou acusado por supostamente interromper sua própria gravidez ou ajudar outra pessoa, de acordo com uma análise da If/When/How, uma ONG de justiça reprodutiva. A IWH estima que o número de casos pode ser muito maior, porque é difícil acessar coordenadamente os registros de todos os municípios do país.

Vários desses casos se basearam em mensagens de texto, histórico de pesquisa e outras formas de evidências digitais.

Esta é uma razão pela qual a privacidade dos dados, assunto recorrente neste blog, é de importância vital. Nos deixamos iludir pela aparente estabilidade do presente, sem atentar para o fato de que as leis podem mudar repentinamente, em um átimo, por um ato unilateral de um governo autoritário, e os registros das atividades dos cidadãos – muitas delas não são mais legalizadas – podem passar a ser usados para persegui-los.

Rios de sangue foram interrompidos nos lugares onde o aborto foi legalizado, ou passou a ser tolerado. Estatísticas confiáveis mostram que o número de mulheres que morrem de abortos clandestinos, ou no parto, ou assassinadas pelos homens que as engravidaram – mas que não querem que elas tenham seus filhos – cai drasticamente quando o acesso ao aborto é garantido.

A abordagem científica considera o aborto um problema de saúde pública, logo, a maneira inteligente de prevenir o aborto – de acordo com 10 em cada 10 cientistas – é investir na prevenção de gravidezes indesejadas.

O Capitalismo de Vigilância

Este debate traz de novo para o primeiro plano as ameaças colocadas pela vigilância governamental institucionalizada e pelo Capitalismo de Vigilância, no qual nossas informações online são vendidas repetidamente, a todo momento, por grandes corporações. O que acontece, nesse ambiente inquisitório em que vivemos hoje, quando alguém quiser apenas se educar sobre o aborto? Onde é ele empregado? Como ele é feito? Em uma sociedade como a dos EUA, adepta à litigação e com baixa tolerância criminal, tudo isso agora pode ser considerado informação passível de acusação.

Uma hipótese para estudo

Meus cálculos em um guardanapo [teoria dos grafos] parecem indicar que bastam apenas três pontos de dados para dar início à suspeição de que um aborto aconteceu.

Cenário Aa:

Alice é uma mulher do seu tempo, que tem relacionamentos, usa redes sociais e consome na Internet usando meios modernos de pagamento.

Eva é uma analista de dados que trabalha para um grupo antiaborto que se reporta à polícia, e seu trabalho é vigiar a Internet à procura de desviantes reais e imaginários. Os dados que Eva extraiu da Internet indicam que:

  • Alice comprou um teste de gravidez – informações de cartão de crédito
  • Alice cortou a ingestão de álcool – informação derivada do levantamento do consumo de Alice
  • Alice começou aulas de yoga – informação encontrada nos perfis sociais

Eva faz suas deduções e espera que Alice faça o anúncio da gravidez no Instagram a qualquer momento, como ela costuma fazer com tudo

Alice posta o anúncio da gravidez.

Ação: Eva agenda para dali a nove meses uma nova checagem do histórico de Alice para verificar o resultado da gravidez. Se o bebê não for detectado no tempo devido: Investigar/Processar possível aborto.

Cenário Ab: Alerta – ação imediata requerida:

  • Alice não postou resultados do teste de gravidez no Instagram – como ela faz com tudo
  • Alice fez uma pausa nas mídias sociais
  • Alice começa a visitar sites de medicina alternativa
  • Alice reserva uma passagem para o México [Eva sabe – pelas redes sociais – que Alice não gosta do México]

Ação: Procurar/Investigar/Processar AGORA.

Nos dias de hoje esse tipo de vigilância certamente está ao alcance, não só dos agentes da Lei, como também de qualquer instituição formada por “cidadãos preocupados” [como os grupos radicais antiaborto que abundam na América do Norte]. Qualquer pessoa motivada e capaz pode ter acesso a poderosas ferramentas de Extração e Análise de Dados.

Para concluir

As mulheres estão no foco das atenções neste momento, mas à medida que novas leis entrarem em vigor, homens também poderão ser processados por atos como “auxiliar” um aborto. O que pode incluir qualquer coisa, desde pesquisar, dizer a alguém onde o aborto está disponível, dizer a alguém que o aborto está disponível, informar quais drogas podem causar um aborto espontâneo, etc. Na verdade, em alguns estados americanos, é possível ser processado por sugerir a uma mulher que ela saia do estado para fazer um aborto.

As consequências do acirramento da repressão ao aborto são bastante simples de prever. Abortos vão continuar a acontecer, apenas em circunstâncias diferentes. Os “fazedores de anjos” vão continuar a existir. (*) Nos países de fala alemã, nos tempos em que o aborto ainda era ilegal, os que prestavam ajuda no aborto recebiam o apelido eufemístico “Engelmacher” (traduzido literalmente como “fazedor de anjo”). E as coisas eram como na canção sombria e cínica “A Velha Fazedora de Anjos (Engelmacherin)”, de Gerd Bronner: “com seu instrumento sem antisséptico, ela não fez um anjo, ela fez dois”.

Nada vai mudar. Exceto dinheiro. Esse vai mudar de mãos.

— o —

Post Scriptum

Os “não nascidos” são um grupo conveniente de pessoas para defender. Eles nunca fazem exigências; são moralmente descomplicados, ao contrário dos encarcerados, viciados ou dos cronicamente pobres; eles não se ressentem de sua condescendência nem reclamam que você não é politicamente correto; ao contrário das viúvas, eles não pedem que você questione o patriarcado; ao contrário dos órfãos, eles não precisam de dinheiro, educação ou creche; ao contrário dos imigrantes, eles não trazem toda aquela bagagem racial, cultural e religiosa que você despreza; eles permitem que você se sinta bem consigo mesmo sem nenhum esforço para criar ou manter relacionamentos; e quando eles nascem, você pode então esquecê-los, porque eles deixam de ser não nascidos.

Você pode amar e defender o não nascido sem ter que arriscar substancialmente seu próprio dinheiro, poder ou privilégio, sem ter que reimaginar as estruturas sociais, sem pedir desculpas ou fazer reparações a ninguém. Os não nascidos são, em suma, as pessoas perfeitas para amar se você quiser afirmar que ama Jesus, mas na verdade, no fundo, não gosta das pessoas que respiram.

Prisioneiros? Imigrantes? Os doentes? Os pobres? Viúvas? Órfãos? Todos os grupos que são especificamente mencionados por Jesus? Todos eles são sacrificados em favor dos não nascidos.

Pastor Metodista David Barnhart – Birmingham, Alabama