Tirem os Políticos das Redes!

Combater a mentira deixou de ser algo que se faz por nobreza de caráter, com propósitos ideológicos ou cívicos, e se tornou um ato positivo, concreto, contra a sua utilização como ferramenta para desmantelar o bem político e social.

tirem os políticos das redes
Imagem: pexels.com

A jurisprudência da liberdade de expressão teve origem na cláusula de debate [link em inglês, sorry] da Constituição americana, concebida originalmente como um instrumento para garantir aos representantes do povo imunidade contra achaques baseados na expressão de suas ideias no curso dos trabalhos legislativos. Mas hoje metastatizou para todo o corpo social na forma de lesões e feridas.

A cláusula de debate funcionava bem quando a informação político-institucional era difundida por telégrafo e publicações regionais, como jornais e periódicos. Agora, no século XXI, com cada representante eleito a ter nas mãos uma plataforma de publicação, a capacidade de levar o discurso para fora do contexto clássico tem dois efeitos interessantes: 1) os representantes mudam seu comportamento para (retro)alimentar as plataformas, e 2) as plataformas funcionam 24 horas por dia, 7 dias por semana, 365 dias por ano, induzindo representantes desonestos e de má-fé a aplicar as cláusulas de discurso e debate de forma falsa e abusiva, ao mesmo tempo que as vinculam, como garantia, a todas as suas atividades.

Assim, a atividade política se desvia cada vez mais dos atos constitucionais de mandato, e se torna cada vez mais um auto-serviço à sua própria causa e agenda.

O remédio

Defendo a noção de que os políticos que atuam como funcionários do governo, ou representantes do povo em quaisquer esferas e em qualquer capacidade devem [por força da lei] comunicar principalmente através de canais oficiais, em vez de dependerem de plataformas de redes sociais, e que a sua presença nas redes sociais pode ser considerada um abuso de poder.

1. Os canais oficiais garantem transparência e responsabilização: Quando os políticos comunicam através de canais oficiais, como websites governamentais, comunicados de imprensa ou declarações oficiais, existe um certo nível de responsabilização e transparência. Esses canais muitas vezes passam por escrutínio e seguem protocolos específicos, garantindo que as informações sejam precisas, verificadas e alinhadas com as políticas governamentais. Esta transparência é crucial para manter a confiança entre o governo e o público.

2. Igualdade de acesso para todos os cidadãos: Os canais oficiais proporcionam igualdade de acesso à informação para todos os cidadãos. Nem todos têm acesso ou utilizam plataformas de redes sociais, e depender apenas delas para a comunicação pode excluir segmentos da população, especialmente aqueles provenientes de meios socioeconômicos mais baixos ou de grupos demográficos mais idosos. Ao utilizar canais oficiais, os políticos garantem que as suas mensagens cheguem a um público mais vasto, independentemente da sua presença nas redes sociais.

3. Preservação da integridade institucional: Os governos baseiam-se em instituições e protocolos estabelecidos. A comunicação através dos canais oficiais respeita estas instituições e mantém a sua integridade. Quando os políticos ignoram os canais oficiais em favor dos meios de comunicação social, podem minar os processos e estruturas estabelecidos, levando à confusão ou mesmo à erosão da confiança pública nas instituições governamentais.

4. Mitigar a desinformação e a má comunicação: Os canais oficiais envolvem frequentemente uma equipe de especialistas que garantem que a informação é precisa, consistente e desprovida de desinformação. As plataformas de redes sociais, por outro lado, são suscetíveis à rápida disseminação de rumores, notícias falsas e desinformação. Ao utilizarem principalmente canais oficiais, os políticos podem ajudar a mitigar a propagação de informações falsas e garantir que o público receba informações fiáveis e verificadas.

5. Prevenir agendas e preconceitos pessoais: As plataformas de redes sociais muitas vezes confundem os limites entre as opiniões pessoais e as declarações oficiais. Os políticos podem utilizar as redes sociais para promover agendas ou preconceitos pessoais, o que pode ser prejudicial ao processo democrático. Ao comunicarem através dos canais oficiais, é mais provável que os políticos apresentem informações de uma forma neutra e imparcial, centrando-se nos interesses do público e não nos interesses pessoais ou partidários.

Embora as redes sociais tenham potencial para ser uma ferramenta valiosa para a comunicação, os políticos que atuam como funcionários do governo devem confiar principalmente nos canais oficiais para garantir a transparência, a igualdade de acesso, a integridade institucional, a precisão e a neutralidade. A dependência excessiva das redes sociais pode, de fato, ser vista como um abuso de poder, uma vez que pode contornar protocolos e instituições estabelecidas, conduzindo potencialmente à desinformação e comprometendo os princípios democráticos.

Sobre Cães e Homens

Amigo e protetor dos cães que sou, sempre quis postar algo sobre eles. Hoje, uso como pretexto – na falta de um melhor – o primeiro dia de minha estação favorita para apresentar minha tradução deste ensaio de Henry Childs Merwin, “On Dogs and Men”, publicado na edição de Janeiro de 1910 da revista “The Atlantic”. Um texto longo para as noites mais longas.

Yoko, minha pretinha.
Yoko, que me leva a passear todos os dias. Ao fundo, Ghanima. EBM/VL

EXISTEM homens e mulheres no mundo que, por sua própria vontade, vivem uma vida sem cães, sem saber o que estão a perder; é para eles que este ensaio, colocado com segurança na digna “The Atlantic”, para permanecer aqui enquanto durarem as bibliotecas e os livros, foi escrito principalmente. Que eles não ignorem isto com desprezo, mas antes parem para considerar o que pode ser dito sobre os cães, como seres com direito à sua simpatia e que têm, talvez, destino semelhante ao seu.

Quanto às poucas pessoas que não apenas não têm cães, mas que também os odeiam, deveriam provocar mais pena do que ressentimento. O homem que odeia um bom cachorro é anormal e não pode lutar contra isso. Certa vez conheci um homem assim, um agiota falecido há muito tempo, cuja vida foi em grande parte uma cruzada contra os cães, realizada através de jornais, panfletos e conversas. Ele costumava declarar que já havia sido mordido muitas vezes por esses animais e que, certa vez, um terrier pulou no bonde em que ele viajava e arrancou-lhe um pedaço da perna (um mero arranhão, com certeza), e então saltou em fuga – tudo sem provocação aparente, e tudo de repente. Provavelmente esta história, por mais estranha que possa parecer, fosse substancialmente verdadeira. As percepções do cão são maravilhosamente aguçadas.

Uma ocorrência recente pode servir como o inverso da história do agiota. Um collie perdido, coxo e quase morrendo de fome, foi acolhido, alimentado e cuidado por uma família de pessoas caridosas, que, no entanto, não gostavam nem entendiam os cães, e estavam ansiosas para se livrar deste, desde que um bom lar pudesse ser encontrado para ele. No decorrer de uma semana, veio visitá-los em sua charrete uma senhora que gosta muito de cães e que possui aquela combinação de espírito dominador com aquela profunda afeição que age como bruxaria sobre os animais inferiores. O collie foi trazido e a história de seu resgate foi contada detalhadamente. Enquanto isso, a velha senhora e o cachorro olhavam-se fixamente nos olhos. “Você quer vir comigo, cachorrinho?” ela disse sem convicção, sem realmente querer levá-lo. O cachorro então pulou e sentou-se ao lado dela, e não pôde ser desalojado por quaisquer súplicas ou comandos – e todas as partes relutavam em usar a força. Ela o levou para casa, mas o trouxe de volta no dia seguinte, com a intenção de deixá-lo para trás. Mais uma vez, porém, o cão recusou-se a se separar de sua nova e verdadeira amiga. Ele abanou o rabo superficialmente a seus benfeitores – ele não queria ser ingrato e, como todos os cães, ele não procurava interesseiramente carne e ossos e um lugar confortável perto do fogo, mas sim carinho e carícias. Não vive o cão que se recusaria a abrir mão do jantar pela companhia do dono.

A missão do cão – digo-o com toda a reverência – é a mesma do Cristianismo, nomeadamente, ensinar à humanidade que o universo é governado pelo amor. A companhia de um cachorro tende a amolecer os corações duros dos homens. Existem dois grandes mistérios sobre os animais inferiores: um, o sofrimento que eles têm de suportar nas mãos do homem; o outro, a riqueza de afeto que possuem e que, em sua maior parte, não conseguem gastar. Todos os animais têm essa capacidade de amar outras criaturas, incluindo o homem. Os corvos, por exemplo, demonstram isso de forma notável. “Tanto afeto latente há em cada bando de corvos que sobrevoam o céu quanto caberia a uma família humana amorosa.” Um corvo e um cachorro, se mantidos juntos, se tornarão quase tão afeiçoados um pelo outro quanto por seu dono. Certamente este fato, esta capacidade dos animais inferiores de amarem, não apenas o homem, mas uns aos outros, é o mais significativo, o mais merecedor de ser ponderado, o mais importante no que diz respeito ao seu lugar no universo, de todos os fatos que pode ser aprendido sobre eles. Comparado com isso, quão trivial é qualquer coisa que o zoólogo, o biólogo ou o fisiologista possa nos dizer sobre a natureza dos animais inferiores!

A visão mais linda do mundo, ouvi dizer uma vez (de mim mesmo, para ser honesto), é a expressão nos olhos de um cachorrinho inteligente e de temperamento dócil – um cachorrinho com idade suficiente para se interessar pelas coisas sobre ele, e ainda assim tão jovem que imagina que todas as pessoas serão boas para ele; tão jovem que não teme que algum homem ou menino lhe dê um chute, ou que algum cachorro lhe tire o osso. Nos olhos de tal cachorrinho há um olhar de inocência confiante, uma consciência de sua própria fraqueza e inexperiência, um desejo de amar e ser amado, que são irresistíveis. Nos cães mais velhos é mais provável notar um olhar ávido, ansioso e indagador, como se estivessem se esforçando para compreender coisas que o Todo-Poderoso colocou além de seu alcance mental; e a abordagem mais próxima de uma expressão realmente humana é vista em cães que sofrem de doenças. Heine, que, como o leitor bem sabe, serviu durante um longo aprendizado na dor, diz em algum lugar que a dor refina até os animais inferiores; e todos os que estão familiarizados com cães, tanto na saúde como na doença, verão a verdade desta afirmação. Vi no rosto de um cão inteligente, sofrendo gravemente de cinomose, uma aparência tão humana que chega a ser quase aterrorizante; como se eu tivesse acidentalmente vislumbrado alguma característica profunda no animal que a natureza pretendia esconder do olhar mortal.

O cão, de fato, apela continuamente à simpatia de seus amigos humanos e, assim, os protege de se tornarem duros ou mesquinhos. Existem certas famílias, talvez especialmente na Nova Inglaterra, e acima de tudo, sem dúvida, em Boston, que precisam ser regeneradas, e podem ser regeneradas pela companhia de um cachorro, desde que o façam com o espírito adequado. Um ilustre pregador e autor, ele próprio um unitarista, comentou recentemente num discurso aos unitaristas que eles eram geralmente as pessoas mais satisfeitas consigo mesmas que ele já havia conhecido. Foi uma observação casual, e talvez nem ele nem aqueles que a ouviram tenham apreciado todo o seu significado. No entanto, o pregador provavelmente não estava pensando tanto nos unitaristas, mas sim em um certo tipo de pessoa frequentemente encontrada nesta vizinhança, e não necessariamente professando qualquer forma particular de religião. Todos nós conhecemos o tipo. Quando um homem tem dinheiro no banco, é respeitável e respeitado, formou-se em Harvard, tem esposa e filhos decorosos, nunca se deixou levar por nenhuma paixão ou entusiasmo, conhece as pessoas certas e se conforma estritamente aos costumes da boa sociedade; e quando esse tipo de coisa vem acontecendo há, talvez, duas ou três gerações, então é provável que se lhe insinue no sangue uma frieza que gelaria o coração de uma estátua de bronze. Tais pessoas são realmente elementos degenerados de sua espécie peculiar e precisam ser salvas, talvez por meio de medidas desesperadas. Deixe-os fugir com a cozinheira; deixe-os entrar para uma religião do tipo metodista violento ou de tipo ritualista intenso (os dois têm muito em comum); ou se não puderem fazer isso, deixe-os arranjar um cachorro, dar-lhe o cuidado da casa, amá-lo e mimá-lo, e assim, pela bênção da Providência, eles poderão alcançar a salvação.

Os reformadores e filantropos deveriam sempre ter cães, para que o elemento de espontaneidade não desapareça completamente deles. A tendência deles é considerar a raça humana como um problema, e pessoas específicas como “casos” a serem tratados, não de acordo com os impulsos de cada um, mas de acordo com certas regras aprovadas pela boa autoridade, e supostamente consistentes com princípios econômicos sólidos. Princípios.

Para meu velho amigo ‘ ——‘, que antes gostava de mim pelo que sou, sem perguntar por quê, há muito deixei de ser um indivíduo e agora sou simplesmente um item da humanidade a quem ele deve obrigações – como minhas necessidades ou vícios particulares parecem indicar. Mas se ele tivesse um cachorro, não iria tratá-lo dessa maneira impessoal, nem se preocupar com a moral do cachorro; ele simplesmente sentiria prazer em sua companhia e o amaria pelo que ele fosse, sem considerar o que ele poderia ter sido. [ver notas]

Conheço e honro um filantropo que, na meia-idade ou próximo disso, tornou-se pela primeira vez dono de um cachorro; e daí em diante revelou-se nele uma veia genuína de sentimento e afeição que os muitos anos de prática do bem e de uma vida virtuosa não conseguiram erradicar. Muitas vezes eu tinha ouvido falar de seus feitos cívicos e de suas bem dirigidas instituições de caridade, mas meu coração nunca se entusiasmou com ele, até que soube que, com óculos no nariz e pente na mão, ele havia passado três laboriosas horas examinando dolorosamente o rosto de um spaniel, e eliminando aqueles hóspedes parasitas que às vezes infestam a pelagem do cão mais limpo e aristocrático. Não tenho vergonha de dizer que tenho agora uma confiança em sua sabedoria que não tinha antes, sabendo que sua cabeça nunca poderá tiranizar seu coração. Seu nome deveria ser registrado aqui, não fosse sua modéstia ofendida pelo ato. (Três letras seriam suficientes para imprimi-lo.)

Ao falar do cão como uma espécie de missionário na casa, quero dizer – nem é preciso dizer – algo mais do que a mera propriedade do animal. Não será suficiente pagar uma grande soma por um cão de raça elegante, equipá-lo com uma coleira cara e depois relegá-lo ao estábulo ou à cozinha. Ele deve fazer parte da família, viver em igualdade de condições com os demais e ser seu companheiro constante. A vida do cão é, na melhor das hipóteses, curta e cada momento será necessário para o seu desenvolvimento. É maravilhoso como ano após ano o animal doméstico cresce em inteligência, quantas palavras ele aprende o significado, quão rápido ele se torna na interpretação do olhar, do tom de voz, do humor da pessoa que ele ama. Ele envelhece aos dez ou onze anos e raramente vive além dos treze ou quatorze anos. Se ele vivesse até os cinquenta anos, saberia tanto que ficaríamos inquietos, talvez aterrorizados, em sua presença.

Uma certa disciplina é necessária para um cão. Se for deixado por conta própria, ele poderá se tornar um tanto dissipado, passar as noites fora, espalhar entre muitos o afeto que deveria ser reservado a poucos. Mas, por outro lado, um cão pode facilmente receber disciplina demais; ele se torna como o filho de um pai despótico. Um cão perfeitamente treinado, um que nunca “pula” em você, nunca coloca uma pata suplicante em seu braço, nunca sobe em uma cadeira, nem entra na sala de estar, – tal cão é uma visão triste para quem realmente conhece e ama os cães. É contra sua natureza ser tão reprimido. Donas de casa excessivamente cuidadosas, e pessoas que estão sobrecarregadas com ambientes dispendiosos, falam em danificar tapetes e outros móveis se o cão tiver direito de entrar em todos os lugares da casa. Mas para que servem os móveis? É para exibição, é garantia da riqueza dos proprietários ou é para uso? Bem-aventurados aqueles cuja mobília é tão barata ou tão pobre que as crianças e os cães não são excluídos dos seus recintos sagrados. Talvez a casa mais feliz em que tive a honra de ser admitido tenha sido aquela em que às vezes era um pouco difícil encontrar uma cadeira confortável: os cães sempre as ocupavam. Infelizmente, onde estão essas cadeiras confortáveis agora? Onde estão os cães que costumavam sentar-se nelas, piscar e bocejar, e dar as patas em constrangimento humorístico?

“’A sala de estar foi feita para cães, e não cães para a sala de estar’, seria a tese de Lady Barnes, se ela a formulasse.” Foi essa mesma Lady Barnes (Rhoda Broughton) quem disse uma vez: “’Não acredito em Eliza, a empregada que deixo responsável aqui. Da última vez que vim de Londres, os cães estavam tão anormalmente comportados que tive certeza de que ela os intimidava. Falei muito seriamente com ela, e desta vez, fico feliz em dizer, eles estão tão desobedientes como sempre, e fizeram ainda mais maldades do que quando estou em casa.’ E ela ri com um delicado deleite com sua própria loucura. ”

A propósito, entre todos os escritores de ficção, haverá algum cujos cães se igualem aos de Rhoda Broughton? Mesmo o querido autor de Rab e seus amigos [Dr. John Brown], mesmo o próprio Sir Walter, com seu imortal Dandie Dinmonts, não nos deram, parece-me, imagens de cães tão realistas e caseiras como as que aparecem nos romances dela. Eles parecem estar lá, não com um propósito definido, mas como se os cães fossem uma parte tão essencial de sua própria existência que se infiltrassem em seus livros quase sem que ela percebesse. Nenhum espaço em seus romances está completo sem um ou dois cachorros; e cada observação que ela faz sobre eles tem a qualidade de uma carícia. Mesmo em um momento trágico, a heroína não pode deixar de observar que “Mink está deitado de lado, pequeno e peludo, com um protetor solar, com as patinhas cruzadas como as de um santo moribundo”. Mr. Brown, aquele querido e fiel vira-lata, está para sempre associado à infeliz Joan; e o “aufff” de Brenda ressoará pelos corredores do tempo enquanto os romances forem lidos.

Talvez o teste final para o amor de alguém pelos cães seja a disposição de permitir que eles transformem a cama em um acampamento. Não há outro lugar no mundo que combine tão bem com o cão. Na cama ele está a salvo de ser pisado; ele está fora do caminho das correntes de ar; ele tem uma posição de comando para monitorar o que acontece no mundo; e, acima de tudo, a superfície é macia e cede aos seus membros estendidos. Nenhum mero homem pode estar tão confortável quanto um cachorro parece estar em uma cama.

Algumas pessoas se opõem a ter um cachorro na cama à noite; e deve-se admitir que ás vezes ele repousa um pouco pesadamente sobre os membros; mas por que ser tão vil a ponto de preferir o conforto à companhia do cão! Acordar na noite escura e colocar a mão naquele corpo quente e macio, sentir as batidas daquele coração fiel – não é isso melhor do que a preguiça imperturbável? A melhor noite de descanso que já tive foi uma vez, quando um filhote cocker spaniel, que acabara de se recuperar de uma dor de estômago (tomara uma ou duas coca-colas), e estava um pouco assustado com a desconfortável experiência, enrolou-se em meu ombro como um tippet de pele, empurrou suavemente seu focinho frio e macio em meu pescoço, e lá dormi doce e profundamente até de manhã.

A companhia de seu dono é o remédio do cão para todos os males, e apenas um caso extremo justificará mandá-lo embora ou hospedá-lo. Colocar um cachorro num hospital, a menos que haja alguma necessidade cirúrgica ou outra necessidade para fazê-lo, é um ato de bondade duvidosa. Muitos e muitos cães já morreram de saudades de casa. Se ele estiver doente, mantenha-o aquecido e quieto, dê remédios simples como você daria a uma criança, despeje chá de carne ou leite maltado em sua garganta, ou mesmo um pouco de uísque, se ele estiver fraco por falta de comida; e deixe-o viver ou morrer, como fizeram nossos pais e os cães de nossos pais – em casa.

O pior mal que pode acontecer a um cachorro, não é preciso dizer, é se perder. As próprias palavras “cachorro perdido” evocam imagens de miséria canina que nunca poderão ser esquecidas por aqueles que as testemunharam. Vi um cachorro perdido, coxo, emaciado, ferido, com pés doloridos, faminto e sedento, mas sofrendo tão intensamente de medo, solidão e desespero – pela mera sensação de estar perdido – que ficou absolutamente inconsciente de sua condição corporal. A agonia mental foi tão maior que engoliu a dor física. Um pequeno Boston terrier, perdido em uma cidade grande por dois ou três dias, ficou tão debilitado em seu sistema nervoso que nenhum cuidado ou carinho poderia restaurá-lo à equanimidade, e foi necessário matá-lo. Oh, leitor, não ignore o cachorro perdido! Socorra-o se puder; preserve-o do que é pior que a morte. É fácil reconhecê-lo pelo olhar de terror nervoso, pela cauda caída, pelos movimentos incertos.

Há uma experiência pessoal de remorso, da qual eu ficaria feliz em desabafar com o leitor. Certa vez, tornou-se meu dever sacrificar um cachorro que sofria de alguma doença incurável. Em vez de fazer isso eu mesmo, como deveria ter feito, levei-o a um lugar onde os cães perdidos são recolhidos e onde aqueles para quem não se encontra um lar são misericordiosamente destruídos. Lá, em vez de conduzi-lo à câmara mortuária, como, mais uma vez, deveria ter feito, entreguei-o ao carrasco. O cachorro era anormalmente nervoso e tímido; e quando foi arrastado contra sua vontade, ele se virou, tanto quanto pôde, e lançou para mim um olhar de horror, de medo, de apelo agonizante – um olhar que me assombrou durante anos.

Se ele tinha alguma ideia do que lhe estava reservado, não sei, mas é altamente provável que sim. Cães e outros animais são maravilhosos leitores de mentes. Conheci dois casos em que alguma discussão sobre a necessidade de matar um cão velho, realizada na sua presença, foi rapidamente seguida pelo desaparecimento repentino e inexplicável do animal; e nenhuma notícia dele jamais pôde ser obtida, embora os maiores esforços tenham sido feitos para obtê-las. Os cavalos são inferiores apenas aos cães nesta capacidade. Freqüentemente, especialmente no caso de cavalos ferozes ou meio quebrados, uma intenção passará da mente do cavalo para a mente do cavaleiro ou cocheiro, e vice-versa, sem que a menor indicação seja dada pelo cavalo ou pelo homem. Homens que montam cavalos de corrida me disseram que uma súbita convicção em suas próprias mentes, no decorrer de uma corrida, de que não conseguiriam vencer, passou imediatamente para o cavalo e fez com que ele diminuísse a velocidade, embora eles não tivessem cessado de instá-lo. É notório que pilotos tímidos e pessimistas perdem frequentemente corridas que deveriam ganhar.

Quanto às histórias notáveis sobre este ou aquele animal, talvez se possa dizer que são provavelmente verdadeiras quando ilustram as capacidades perceptivas do animal, e provavelmente falsas quando dependem do seu poder para se originarem. Recentemente apareceu uma reportagem de uma corrida entre mergulhões selvagens: como os mergulhões se reuniram e organizaram as preliminares (não foi dito se eles fizeram registros sobre o evento ou adotaram o sistema de pool de apostas), como a corrida foi realizada, ou melhor, voada, em meio a intensa excitação lunática, e como o vencedor foi saudado com gritos de aplausos!

Algum poder de invenção os animais, e especialmente dos cães, certamente têm. Existe o truque familiar que os cães fazem quando um, para tirar um osso do outro, corre um pouco, dá o latido que significa a presença de um intruso, depois volta e foge silenciosamente com o osso que o outro cão, na curiosidade de ver quem vem, caiu impulsivamente. Este é um exemplo não apenas de raciocínio, mas de pensamento criativo.

Em geral, porém, quando os cães nos surpreendem, como acontece frequentemente, é pela delicadeza e agudeza dos seus poderes perceptivos. Quão infalivelmente distinguem entre diferentes classes de pessoas, como, por exemplo, entre os membros da família e os empregados; e novamente, entre os criados e os amigos da casa! Inquestionavelmente, o cão tem três conjuntos de maneiras para essas três classes de pessoas. Ele tomará na cozinha liberdades que jamais sonharia tomar na sala de jantar. Sabemos que nossa cozinheira fugiu da cozinha aterrorizada porque Fígaro, um magistral cocker spaniel, ameaçou mordê-la se ela não lhe desse imediatamente um pedaço de carne. Figaro concluiu que a cozinheira era em parte sua cozinheira e que ele tinha o direito de intimidá-la, se pudesse.

Quanto aos diferentes membros da família, o cão irá “avaliá-los” com um instinto infalível. É impossível esconder dele qualquer fraqueza de caráter; e se você for forte, ele também saberá disso.

Enquanto escrevo estas linhas, a visão do “Sr. Guppy” surge diante de mim. Guppy era um Boston terrier muito pequeno, com cabeça branca, mas de cor tigrada. Ele tinha uma linda “caneca”, muito parecida com a de um bulldog, com nariz curto, mandíbulas largas e muita pele solta pendurada em seu pescoço robusto e pequeno. Deve-se admitir que ele era um tanto auto-indulgente, estando continuamente à espera de uma oportunidade de se deitar perto do fogo – uma situação considerada por seus amigos como prejudicial para ele. O Sr. Guppy me entendia muito bem. Ele sabia que eu era uma criatura pobre, fraca, descontraída e distraída, com quem ele podia tomar liberdades; e, portanto, quando estávamos sozinhos, o malandro dormia com a cabeça na lareira, enquanto eu estava absorto em meu livro. Mas ouça! há um barulho na escada, de alguém que o Sr. Guppy amava e temia mais do que qualquer cachorro jamais me amou ou temeu; e imediatamente o pequeno impostor se levantava e rastejava suavemente de volta ao seu lugar, num tapete no canto; e ali seria encontrado deitado e piscando, com uma expressão de perfeita inocência, quando a disciplinadora entrava na sala.

Os cães têm a mesma sensibilidade que associamos a homens e mulheres bem-educados. Sua polidez é notável. Ofereça água a um cachorro quando ele não estiver com sede, e ele quase sempre dará uma ou duas voltas, só por cortesia, e para mostrar sua gratidão, conheço um grupo de cães que nunca se esquecem de vir avisar a dona quando terminaram de jantar, para agradá-la. E se o jantar ainda não foi servido, notificá-la-ão imediatamente da omissão. Se acontecer de você pisar no rabo ou na pata de um cachorro, com que avidez – depois de um irreprimível ganido de dor – ele lhe dirá, por meio de suas carícias, que sabe que você não teve a intenção de machucá-lo e que o perdoa!

Além disso, nas relações uns com os outros, os cães têm um aguçado senso de etiqueta. Um conhecido viajante faz esta observação inesperada sobre uma tribo de homens negros nus, que vivem numa das ilhas dos Mares do Sul: “Nas suas relações diárias há muitas coisas rígidas, formais e precisas.” Quase a mesma observação pode ser feita sobre os cães. A menos que tenham relações muito íntimas, eles se esforçam muito para nunca se esbarrar ou mesmo tocar um no outro. Um cachorro passar por cima de outro é uma violação perigosa da etiqueta, a menos que sejam amigos especiais. Não é incomum que dois cães pertençam à mesma pessoa e vivam na mesma casa, mas nunca prestem atenção um no outro. Temos um spaniel tão digno que nunca permitirá que outro membro da família canina coloque sua cabeça sobre ele; mas, com o egoísmo de um verdadeiro aristocrata, não hesita em recorrer aos outros cães para esse fim.

Muitas vezes a etiqueta canina é tão sutil que é difícil notá-la. Em nossa casa há dois cães incompatíveis que, em circunstâncias normais, ignoram completamente um ao outro, e entre os quais qualquer familiaridade seria ferozmente ressentida. E, no entanto, quando todos estamos caminhando, se eu for obrigado a repreender ou punir um desses dois, o outro correrá até o ofensor, latirá para ele e até o empurrará, como se ele estivesse dizendo: “Bem, velho, você não tem vergonha de si mesmo?” E o outro cachorro, sentindo que está errado, suponho, submete-se humildemente ao insulto.

Uma família de seis cães costumava formar casais, cada casal em termos de intimidade e carinho especiais; e além desses relacionamentos havia muitos outros entre eles. Por exemplo, todos eles se submetiam ao cão mais velho, embora ele fosse menor e mais fraco que os demais. Se uma briga começasse, ele pulava entre os competidores e a interrompia; se um cachorro se comportasse mal, ele atacava o agressor com um rosnado de advertência; e este exercício de autoridade nunca foi ressentido. Os outros cães pareciam respeitar o peso dos anos, o seu carácter, que era dos mais elevados, e a sua coragem moral, que era indubitável. Este mesmo cachorro tinha muitas características humanas. Ele e seus companheiros dormiam juntos num sofá no andar de cima, onde, numa noite fria, se aconchegavam num amontoado indistinguível. Às vezes o velho cachorro deitava-se antes dos outros e depois, descobrindo que precisava do calor e da companhia da presença deles, ia para o corredor, enfiava a cabeça entre os balaústres e choramingava baixinho até que subissem para se juntar a ele.

Os cães têm alguma noção do que é certo e errado? Eles têm, como todos concordam, um senso de humor, e também um senso de vergonha, perfeitamente distinto do medo do castigo. Do seu sentimento de vergonha, deixe-me dar um exemplo. A visão do cão, pelo menos no que diz respeito a objetos estacionários, é muito fraca, sua confiança real está em seu olfato, e muitas vezes vi um cachorro confundir alguém de sua própria família com um animal estranho, correr em sua direção, com todos os sinais de hostilidade, e então, quando chegou a poucos metros do outro cachorro, de repente deixou cair o rabo entre as pernas e saiu furtivamente, como se temesse que alguém tivesse notado seu erro absurdo.

Será que um animal deveria possuir senso de humor e senso de vergonha, sem ter também algum senso elementar de certo e errado? Mas mesmo que se pense que ele é desprovido desse sentido, é certo que ele possui aqueles impulsos bondosos a partir dos quais ele foi desenvolvido. Tudo o que há de melhor no homem surge de algo que é praticamente o mesmo no cão e nele, a saber, o instinto de piedade ou benevolência. A esse instinto, tal como existe nos animais inferiores, Darwin atribuiu a origem da consciência no homem; e agora há poucos filósofos, se é que há algum, que dariam uma explicação diferente disso. Já vi um cachorrinho com menos de seis meses correr para confortar outro cachorrinho que chorava de dor; e o impulso que motivou este ato foi essencialmente o mesmo que impulsiona os mais nobres da humanidade quando fazem amizade com os pobres ou aflitos. Somos semelhantes aos animais inferiores moralmente, bem como física e mentalmente.

Mas esta é uma descoberta moderna. É surpreendente e confuso perceber quão pouco o Cristianismo organizado fez pelos animais inferiores. A concepção eclesiástica deles era simplesmente que eram criaturas sem alma e, portanto, não tinham direitos contra a humanidade ou nas mãos dela. Até hoje, essa concepção permanece, embora seja qualificada, é claro, por outras considerações mais humanas. Até o Cardeal Newman disse:

Não temos deveres para com a criação bruta; não há relação de justiça entre eles e nós. É claro que somos obrigados a não tratá-los mal, pois a crueldade é uma ofensa à santa lei que nosso Criador escreveu em nossos corações, e isso Lhe desagrada. Mas eles não podem reivindicar nada de nossas mãos; em nossas mãos eles estão absolutamente entregues. Podemos usá-los, podemos destruí-los a nosso bel-prazer: não para nosso prazer desenfreado, mas ainda assim para nossos próprios fins, para nosso próprio benefício e satisfação, desde que possamos dar um relato racional do que fazemos.

Esta posição, embora talvez não seja cruel em si, resulta inevitavelmente em crueldades ilimitadas. Quando um viajante inglês censurou uma senhora espanhola por ter atirado um gatinho doente pela janela, ela justificou-se dizendo que o gatinho não tinha alma; e esse é o ponto de vista nacional.

O protestantismo tem sido quase tão indiferente quanto o catolicismo aos animais inferiores. Na verdade, a consciência que existe fora da igreja, católica ou protestante, neste assunto, superou a consciência da igreja. “A crueldade”, disse Du Maurier, “é o único pecado imperdoável”; e o mundo está lenta mas seguramente chegando a essa opinião. O despertar há muito adiado da humanidade para o sofrimento dos animais não se deveu a um declínio da concepção eclesiástica deles, nem mesmo ao novo conhecimento relativo à origem comum do homem e dos animais; na verdade, precedeu ligeiramente esse conhecimento; mas foi devido ao esclarecimento gradual e ao aperfeiçoamento moral da raça, especialmente da raça de língua inglesa. O século XIX, como muitas vezes nos dizem, assistiu a mais descobertas e invenções do que as que tinham sido feitas nos seis mil anos anteriores; mas acredito que nas eras futuras nem uma dessas descobertas e invenções, nem todas juntas, serão tão importantes como fatores de desenvolvimento e elevação do homem, como o serão aquelas leis e sociedades humanas que surgiram pela primeira vez naquele século.

O progresso da humanidade é muito mais moral do que intelectual. As autoridades competentes dizem-nos que o anglo-saxão de hoje é mentalmente inferior ao grego que viveu há dois mil anos: e se a raça humana melhorou durante esse tempo, não é tanto porque o homem avançou no conhecimento, mas porque ele adquiriu mais simpatia pelos seus inferiores, sejam eles brutos ou humanos, mais generosidade, mais misericórdia para com eles. Nem Stevenson, nem Faraday, nem Morse, nem Fulton, nem Bell, fizeram tanto pela raça humana, para não falar dos brutos, como fez aquele duelo irlandês que, no ano de 1822, propôs no Parlamento Inglês, em meio a uivos e gritos de escárnio, o que mais tarde se tornou a primeira lei para a proteção de animais mudos já incluída no estatuto de qualquer país. Todo movimento para o alívio da criação bruta originou-se na Inglaterra; e quando amaldiçoarmos John Bull https://pt.wikipedia.org/wiki/John_Bull_(personagem) por uma coisa ou outra, lembremo-nos desse fato para sua honra eterna!

É difícil separar-se de um velho amigo cachorro sem esperança de encontrá-lo novamente, é difícil acreditar que o espírito de amor que queimava tão firmemente nele se extinguiu para sempre. Mas para aqueles que defendem o que chamei de concepção eclesiástica dos animais inferiores, nenhuma outra visão é possível. O devoto católico e poeta requintado, Dr. Parsons, expressou lindamente este fato:

Quando os pais morrem, há muitas palavras a dizer—
Palavras amáveis, consoladoras – sempre se pode rezar;
Quando as crianças morrem, é natural contar
A mãe deles: “Certamente está tudo bem com eles!”
Mas para um cachorro, essa era toda a vida que ele tinha,
Já que a morte é o fim dos cães, seja boa ou má.
Este era o seu mundo, ele estava contente aqui;
Não imaginei nada melhor, nada mais querido,
Do que sua jovem amante; não buscou nenhuma esfera superior;
Não tendo pecado, pediu para não ser perdoado;
Nunca adivinhei sobre Deus nem sonhei com o paraíso
Agora ele faleceu, tanto amor
Sai da nossa vida, sem uma esperança no céu!

Mas não há esperança? Não há tanta — ou, se o leitor preferir, tão pouca — esperança para o cão como há para o homem? Anos atrás, lembro-me de ter lido numa importante revista a declaração de que, sem dúvida, alguns homens, os mais iníquos, serão extintos com a morte, ao passo que o resto da humanidade será imortal. Esta visão tinha alguns adeptos na época, mas agora seria considerada irracional por quase todos. Quem pode acreditar que entre o melhor e o pior homem exista um abismo que justifique um destino tão diverso! Além disso, aprendemos que não existem abismos ou saltos na natureza. Uma coisa desliza para outra; toda criatura é um elo entre duas outras, e o próprio homem pode ser rastreado física, mental e moralmente até os animais inferiores.

Não é então razoável supor que a imortalidade pertence a todas as formas de vida ou a nenhuma, que se o homem é imortal, o cão também o é? Até mesmo especular sobre este assunto parece quase ridículo, pois nosso conhecimento é tão limitado; e ainda assim é difícil evitar especulações. A transmigração das almas pode ser um fato, ou os homens, os cães e todas as outras formas de vida podem ser simplesmente formas, fases temporárias, procedendo de uma fonte e a ela retornando. Mas, infelizmente, todas as suposições que podemos fazer tornam-se quase, se não totalmente insustentáveis, pelo simples fato de o intelecto humano as ter concebido – é tão improvável que encontremos a solução certa!

Nesta situação, o que parecemos obrigados a fazer é abster-nos de conclusões precipitadas, e especialmente egoístas, para manter as nossas mentes abertas, para considerar os animais inferiores não apenas com piedade, mas com uma certa reverência. Não sabemos o que ou de onde são; mas sabemos que a natureza deles se assemelha à nossa; que eles têm Individualidade, como nós a temos; que sentem dores, tanto físicas como mentais, que são capazes de afeto; que, embora inocentes, como acreditamos, os seus sofrimentos foram e são indescritíveis. Não há mistério aqui?

Para muitos homens, talvez para a maioria dos homens, um cão é simplesmente uma máquina animada, desenvolvida ou criada para a conveniência da raça humana. Pode ser que sim; e mais uma vez pode acontecer que o cão tenha o seu lugar de direito no universo, independente e independente do homem, e que um dano causado a ele seja um insulto ao Criador.


Notas:

Procurei ser fiel ao estilo da época e mantive substantivos, pronomes, gêneros e plurais.

Repare na ironia do autor ao estocar as nobres famílias da Nova Inglaterra e o ressentimento dirigido a um amigo não identificado, preconceituoso de suas atitudes liberais.

Henry Childs Merwin é conhecido universalmente por ter escrito “Thomas Jefferson

AI: A Tecnologia é Madura? Estamos Prontos?

A IA generativa é uma ferramenta fantasticamente poderosa, mas a alta velocidade de implementação na tecnologia moderna significa que quaisquer contratempos ou problemas de adoção precoce são enfrentados por milhões de pessoas antes que eles sejam resolvidos.

Escultura de areia com o tema robot
Imagem: pexels.com

O nosso ordenamento legal simplesmente não foi concebido para responder a um ambiente em rápida mudança como este, o que significa que todos no mercado estão à mercê dos pioneiros, mas têm poucos recursos se forem afetados negativamente.

No momento as empresas estão se movendo rápido demais e quebrando as coisas de todo mundo, o que está causando problemas que não podemos resolver antes que novos problemas sejam introduzidos. Eu estou à espera – enquanto faço minha parte – da ação dos legisladores sobre uma boa forma de garantir que as pessoas sejam devidamente protegidas e as empresas regulamentadas, sem estrangular o crescimento e o desenvolvimento.

Perguntas

Quanto ao que pergunto no título, a verdade é que todo o movimento que vemos em torno da IA tem pouco a ver com a tecnologia e mais a ver com o chamado hype, e com o quão suscetíveis nos tornamos a ele. Na feroz competição social, estamos dispostos a destruir a sociedade ao deixar que esses papagaios estocásticos façam nosso trabalho sujo de abusar de outros humanos em busca da satisfação dos desejos mais torpes e irracionais (dinheiro e sexo).

Não é de estranhar que um mal-estar paire no ar. O que me deprime é a quantidade de pessoas que entram no comboio sem qualquer reserva. Esses produtos e as pessoas que os idealizam, desde a forma como são construídos até a forma como são vendidos e como são usados, estão ingerindo nossa toxicidade sistêmica e amplificando-a em poder e velocidade.

Recentemente circulou uma carta aberta implorando às empresas geradoras de Grandes Modelos Linguísticos [LLM] e Difusão de Imagem que pausassem seus lançamentos públicos por um período de tempo para que a sociedade possa discutir o que essas coisas realmente são e o que será permitido a elas fazer ou não fazer. Cartas abertas são sempre uma estratégia ingênua, e neste caso específico sem a menor possibilidade de ganhar força. Vimos isso acontecer em menor escala com o desastre causado pela destituição de Sam Altman e pela reconquista do conselho da OpenAI; quaisquer considerações éticas foram literalmente deixadas de lado e vilanizadas, enquanto os jogadores de má-fé, que prometiam a lua enquanto pediam o nosso dinheiro são elogiados como exemplo de liderança.

Mas o que me surpreende mesmo são as minhas próprias conclusões sobre o quão vil é toda esta situação e quão pouca esperança tenho de uma resolução decente.

3D Printing: I’m Making a 500°C Ceramic Hot End

How I intend to steal the Fire of the Gods and give it to the geeks.

Hotend TF-01 Linear comparado ao hotend standard Sethi 3D.
The unfinished prototype of the first model to be tested, the upcoming TF-01 Linear (the white piece), seen here alongside the standard metallic hotend from Sethi 3D, for dimension comparison. Image: Triforma CC-BY-SA-NC

Notice: This is a Portuguese language blog extraordinarily featuring an article in English.

As a 3D printing entrepreneur and enthusiast, I made the decision last year to dedicate a greater share of my time towards this technology, whose best days I believe are still ahead. My goal is to use 3D printing not just for creating prototypes, but for producing final products — like parts and components — for industrial and consumer use.

My aim is to utilize additive manufacturing to work with advanced materials such as nylon and carbon fiber. Achieving high temperatures above 300°C/573°F is crucial for this. Does this ambition make sense? With the increasing popularity and accessibility of new industrial-grade materials like PC, TPI, and PEEK, which are categorized as “engineering superplastics,” the demand for high-temperature capabilities is certainly on the rise. Therefore, I strongly believe that pursuing this direction does make sense.

However, despite the variety of brands, the crucial item for FFF 3D printing, the so-called hotend remains, despite advances, quite limited in its presentation and capabilities. The part consists of a chamber that is heated by a heating element, which is controlled in a closed loop using a thermistor for temperature feedback. The lower part of the set has a removable nozzle that deposits the material on the 3D printer’s printing plate. See Anatomy of a Hot End.

The hotend is typically constructed from steel and relies on Teflon linings or titanium+copper heatbreaks for passive heat control. It is essential for the filament to stay relatively cool until it reaches the heating block, preventing the heat from rising through the hotend body and excessively softening the filament. This phenomenon, known as heat creep, is addressed through the use of heat barriers.

Hot Ends

The standard hotend installed in my Sethi 3D FFF printer– a Brazilian 3D printer manufacturer — is an excellent product. It operates within the lower performance range, constructed from steel and Teflon-coated. This well-crafted and honest product fulfills its intended purposes exceptionally well, especially for printing with PLA and ABS filaments. However, like all other hotends in its category, its essential component is the internal Teflon lining through which the filament runs. Unfortunately, this Teflon core starts to deteriorate above the 240°C/470°F mark.

Impressora Sethi 3D.
Our beautified Sethi S3 on which the project was developed. From factory it has a more conservative look; a closed box. The addition of a transparent panel enhances print control and allows for greater flexibility in media production – Image: CC-BY-SA-NC

The other available choices consist of hotends crafted entirely from metal, also referred to as “all-metal” in the industry. These hotends employ a bi-metallic core, typically composed of titanium and copper, to act as a thermal barrier between the heating block and the heat sink. As a result, they are able to withstand higher temperatures and facilitate the printing of filaments designed for more sophisticated applications. Despite this, the temperatures they can achieve are still comparable to those of standard hotends such as the one manufactured by Sethi, and their primary purpose is to prevent the premature melting of the filament, the previously cited heat creep.

It’s somewhat disappointing to me to see that in 2024, the best the global industry can come up with is using titanium, a metal with a thermal conductivity index of 25 W/mK, as a thermal barrier. Surely, there has to be a better solution.

In practical terms, both hobbyist makers and occasional tech enthusiasts typically encounter limitations around the 350°C/660°F mark. Beyond this point, a shift to a different level of expertise may be necessary. However, is it conceivable to make temperatures exceeding 500°C/930°F, which are currently accessible only to high-level industry players, attainable for the average individual?

Rare Earths Everywhere

Over the past year, I’ve immersed myself in ceramic literature and marveled at the exquisite items crafted from a variety of transition metals and rare earth oxides. As I pondered the constrained selection of hotend options, I started to perceive a potential opportunity worth exploring.

Isn’t a hotend essentially just a glorified tube? If the folks at Sethi managed to create one using their expertise in metals(*), then surely someone like me, with newfound knowledge of advanced ceramics, could fashion a similar device. Why not harness these incredible materials for their inherent purpose, like regulating the heat of an extruder’s hot tip? How has this possibility been overlooked by the industry?

Ideas started pouring in from some hidden corner of my mind. I began visualizing a zirconia-white object. I called upon my expertise in CAD [OpenSCAD, actually] and settled in front of the workstation, accompanied by a monitor displaying the Periodic Table, to sketch my concept of a ceramic hotend suitable for the Sethi S3 3D printer – my own.

A few sleepless nights later, I had the blueprint of my petite yet fearless creation, boasting unconventional shapes for a hotend, a departure from the typical appearance of a conventional heatsink with its stacked metallic discs. With ceramics, heat conduction is significantly reduced, eliminating the need for a large heat dissipation area and offering newfound design flexibility. The material’s texture and color options — perhaps a pink hue for March? — introduce yet another layer of aesthetic appeal. Ultimately, the hotend can emerge as a beautiful piece.

It quickly became clear to me, within just a few days, why there were scarce offerings of ceramic objects in the market, apart from toiletries. This insight also sheds light on the intriguing and highly pertinent design of the initial hotend envisioned by Sethi in 2013. Traditional ceramic shaping techniques simply do not lend themselves to elaborate stylistic innovations or intricate anatomical details.

Until recently, advanced ceramists lacked the technological means to depart entirely from tradition, therefore they were limited to producing basic objects like rings and tubes using methods such as slip casting, pressurized injection, dry pressure molding, and other large-scale industrial techniques. When it comes to constructing a small component for a precision instrument like a 3D printer, ceramic doesn’t appear to be a practical choice.

Sol-gel Comes for the Rescue

Sol-Gel Chemistry, a process that I had studied extensively in the months prior to my insight and that I knew could potentially solve the challenge of working with ceramics in fine mechanics; enabling the creation of ceramic objects with significant structural complexity.

In simple terms, sol-gel chemistry involves the preparation of inorganic polymers or ceramics from a solution by initially converting liquid precursors into a ‘sol’ [derived from SOLution], and subsequently into a network structure referred to as a ‘gel’.

The formation of a sol occurs through the hydrolysis/condensation of particles, and can be broadly defined as a colloidal suspension, covering a wide range of systems. According to the International Union of Pure and Applied Chemistry (IUPAC), a colloidal system is a dispersion of one phase into another where, “the molecules or polymolecular particles dispersed in a medium have, at least in one direction, a dimension between 1 nm and 1 μm”. Well-known examples of colloids include milk and mayonnaise.

Extensive scientific literature has explored the sol-gel process and its applications in advanced ceramics – for further information, please refer to the recommended bibliography. If you recall the ceramic covering bricks of the space shuttle, they are produced using processes similar to these.

Gel Casting

Ceramic shaping techniques are categorized as either dry or wet forming processes. Gel molding, also known as gel casting, falls under the wet category. The wet forming technology we employ, developed by Oak Ridge National Laboratory (ORNL), is capable of producing high-density ceramics with complex shapes, approaching the final product’s shape [‘near net shape’]. This method offers several advantages, including a short molding time, no material restrictions for the mold, high resistance while unsintered (referred to as “green”), and the ability to apply sections of varying thickness.

Molds used for developing the prototypes – Image: Triforma – CC-BY-SA-NC

It’s important to note that the gel molding method allows for the use of virtually any material to shape the ceramic masses, opening up a new and extensive opportunity for the utilization of 3D printers. No longer limited to prototyping, they become active and highly productive assets for manufacturing advanced ceramics. This is due to their capacity to directly and affordably produce complex molds on-site.

This application encompasses FFF printers as well. In gel casting, the distinct layered marks of the molded impression are faithfully transferred to the molded parts. Personally, I plan to incorporate this ‘imperfection’ as the visual identity of the product, revealing its origin. Others may understandably prefer flawlessly precise and uniform molds, whether they are printed in SLA, SLS, or machined in stainless steel.

Overall, leveraging gel molding represents a significant leap in productivity and profitability for any FFF printer, as an ABS mold that it takes 2 hours to deposit can be used to replicate thousands of high-performance ceramic parts in a short timeframe.

This Project

In our ongoing process, we begin by preparing water-based gels. This involves dispersing ceramic powder (including zirconia and yttria) in water. Following this, we introduce gelling agents, such as monomers and initiators, and carefully mix them to create a colloidal suspension, as mentioned earlier. This mixture is then poured into an ABS plastic mold, which has been created using 3D printing, and left to dry, forming a green body. After this stage, the green body is removed from the mold, undergoes additional drying, and is subject to high temperature sintering. Once sintered, the material goes through a final treatment involving machining and partial enameling.

Gelcasting.
The solution is shaped within the plastic molds. The mold in the background is already closed, undergoing the gel curing/drying process. – Image: Triforma – CC-BY-SA-NC

Until recently, acrylamide (AM) was commonly used as a gelling agent. However, due to the neurotoxicity of AM, gel molding was unable to be employed on a large scale in the industry. This hampered the development of this technique and is also, consequently, partly responsible for the relative scarcity of complex ceramic objects on the market. In this project, we use a gel shaping process based on natural polymers like agarose, which removes impediments to taking advantage of the technology.

It’s quite poetic that a technology as ancient as ceramics can still be the most advanced in terms of materials. Although I may make it sound simple, the effort required months of theoretical and practical learning.

In the end, we have an innovative product, a small thermal element weighing just 10 grams. Its seemingly delicate structure is capable of withstanding temperatures above 2300°C/4300°F and transmitting just 1.7 W/mK of the heat it encounters. For comparison, titanium can withstand temperatures of this magnitude but has a much higher thermal conductivity of 25 W/mK, while Teflon is a great insulator, transmitting only 0.2 W/mK of heat, but it cannot withstand temperatures above a mere 240°C/470°F. The low thermal conductivity of the zirconia-yttrium system theoretically can mitigate heat creep and should make the hotend capable of printing any type of filament.

As additional advantages, the process uses less energy, generates no noise at any stage of production, and does not produce significant effluents. And did I mention that the unit weighs just 10 grams?

For the second phase of the project, it’s worth incorporating a zirconia-magnesia heatbreak into the ceramic structure to further reinforce the set. We will be able to reach as far as the hot block can handle. I read about a Japanese group working on a hotend suitable for ~850°C/~1600°F. Extruding a copper wire with my Sethi desktop printer now seems like a completely achievable goal.

Um heatbreak cerâmico junto ao seu molde.
A ceramic heatbreak — and its small mold — designed to withstand temperatures of 1600°F. Image: Triforma – CC-BY-SA-NC

But this is where the problems begin.

Tests

At this moment, I find myself surrounded by recently acquired laboratory equipment such as beakers, Erlenmeyer flasks, scales, a magnetic stirrer, and a variety of substances. What was intended to be the starting point of a small-scale industrial endeavor might, depending on the observer, resemble a room within a pharmaceutical facility or a rapid analysis laboratory at customs. I am on the verge of commencing a pivotal experiment: ensuring that the process outlined above consistently functions for mass production.

In addition to the formal process and the few prototypes obtained with individual molds, it is imperative to conduct a substantial number of tests, including those related to chemical composition/formulation and destructive mechanical, thermal, and performance assessments.

If we succeed in producing a reasonable quantity at a reasonably low cost, which I firmly believe is entirely achievable, I intend to make the product available for direct sale on the Triforma website – launching soon. The goal is to replicate the business model of Slice Engineering, with OpenSource licensing. I am determined to have a minimally viable product by mid-April and will be working tirelessly towards this objective.

I will share the outcomes of this project here. Stay tuned for updates.

(*) While I have made several references to Sethi 3D in this text, I want to clarify that my only association with this esteemed company from Campinas, Brazil, is that of a [satisfied] customer. However, it goes without saying that I would be thrilled to have some connections. I hold great respect for all industrial initiatives, particularly those related to advanced technology and those situated in Brazil, which elicit not only respect but also profound admiration.

Recommended Reading:

Sol-gel

https://en.wikipedia.org/wiki/Sol-gel_process

Sol-Gel Chemistry and Methods

Link to PDF

Gel Casting of Ceramic Bodies

https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1002/9781118176665.ch6

The evolution of ‘sol–gel’ chemistry as a technique for materials synthesis

https://pubs.rsc.org/en/content/articlehtml/2016/mh/c5mh00260e

Thermal Properties of Ceramics

Link to PDF

A review on aqueous gelcasting: A versatile and low-toxic technique to shape ceramics

https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0272884218334606

Impressão 3D: Um Hotend para 500 graus

Como pretendo roubar o Fogo dos Deuses para dar aos geeks.

Hotend TF-01 Linear comparado ao hotend standard Sethi 3D.
O protótipo não usinado do primeiro modelo que começa a ser testado, o futuro TF-01 Linear (a peça branca), visto aqui ao lado do hotend metálico standard da Sethi 3D, para comparação das dimensões – Imagem: Triforma – CC-BY-SA-NC

Não falo muito sobre isso, mas eu trabalho também com impressão 3D. Em algum momento do ano passado eu decidi dedicar uma fatia maior do meu tempo a essa tecnologia cujos melhores dias eu acredito ainda estarem à frente. Eu quero poder imprimir materiais estruturais para oferecer, ao invés de protótipos, produtos finais – como peças e componentes – para indústria e consumo.

Eu quero poder trabalhar com manufatura aditiva de nylon, fibra de carbono, cerâmica e outros materiais avançados. Para isso eu preciso de altas temperaturas — acima de 300°C. Faz sentido querer tanto? Bem, novos materiais de nível industrial conhecidos como “superplásticos de engenharia”, como PC, TPI e PEEK, estão se tornando mais populares e acessíveis, e a capacidade de trabalhar com altas temperaturas será uma exigência crescente.

Contudo, apesar da variedade de marcas e formatos, o ítem crucial para a impressão 3D FDM [Deposição de Filamento], o chamado hotend, ou ‘ponta quente’ em português, continua, apesar dos avanços, bastante limitado em sua apresentação e capacidades. A peça consiste em uma câmara que é aquecida por um elemento de aquecimento, o bloco, que é controlado em circuito fechado usando um termistor para feedback de temperatura. A parte inferior do conjunto possui um bico removível que deposita o material na placa de impressão da impressora 3D.

Invariavelmente ele é feito de aço, e o controle — passivo — de calor, algo importantíssimo, é feito por peças de teflon, ou titânio+cobre, na maioria dos casos. É crucial que o filamento se mantenha relativamente frio até a entrada no bloco de aquecimento. O calor do bloco não pode subir pelo corpo do hotend e amolecer demasiadamente o filamento. Isso é chamado de heat creep [se eu fosse traduzir eu diria “insinuação do calor”], e é evitado com barreiras de calor.

Pontas quentes

O hotend padrão da Sethi 3D, de Campinas, fabricante brasileira de impressoras3D, que equipa minha impressora de filamento, é um grande produto. É um hotend que habita a região mais baixa da curva de performance, feito de aço e revestido com teflon. É um produto honesto e muito bem construído, completemente satisfatório para os casos de uso que ele atende, notadamente a impressão usando filamentos PLA e ABS. Mas esse hotend standard [e todos os outros de sua classe] tem como ítem fundamental um revestimento interno de teflon por onde passa o filamento. Esse core de teflon começa a perder sua integridade acima dos 240°.

Impressora Sethi 3D.
A Sethi S3 ‘bonitificada’ em que desenvolvemos o projeto. Originalmente ela é um equipamento mais sóbrio, fechada. Um painel transparente aumenta o controle da impressão e possibilita mais liberdade na produção de mídia. – Imagem: Triforma – CC-BY-SA-NC

Restam como opção os hotends feitos inteiramente de metal [all-metal, no jargão em inglês]. Esses hotends usam um núcleo bi-metálico, normalmente titânio e cobre, como barreira de calor entre o bloco de aquecimento e o dissipador de calor [heat sink]. Permitem então temperaturas mais altas e são capazes de imprimir filamentos destinados a usos mais sofisticados. Mesmo assim as temperaturas alcançadas são ainda da mesma ordem dos hotends standards como o da Sethi, e seu desempenho visa apenas evitar a fusão precoce do filamento [heat creep].

Abro aqui um parêntese para dizer que, de alguma forma, é um tanto decepcionante para mim ver que o melhor que a indústria mundial pode fazer em 2024 é empregar titânio, um metal com índice de condutividade térmica de 25 W/mK, como barreira térmica. Tem que haver coisa melhor.

Em suma, na prática, o maker e o ocasional geek encontram seu limite por volta dos 350°. Acima disso talvez seja preciso mudar o status para CNPJ. Mas, e se fosse possível trazer ao alcance dos mortais as temperaturas olímpicas além dos 500 graus, disponíveis aos deuses do capital?

Terra por toda parte

No último ano eu li muito sobre cerâmica e me deleitei com a visão dos belos objetos e peças que hoje são fabricadas com os diversos metais de transição e óxidos de terras raras. Ao considerar as estreitas opções de hotends metálicos disponíveis comecei a perceber que poderia haver aí uma oportunidade a explorar.

Um hotend é apenas um tubo glorificado, certo? Se o pessoal da Sethi fabricou um usando os seus conhecimentos de metais(*), um fuçador como eu poderia construir um usando seus – recém adquiridos – conhecimentos de cerâmica avançada, certo? Por que não usar essas terras maravilhosas para um fim ao qual elas são unicamente vocacionadas, como o controle térmico da ponta quente de um extrusor? Como isso foi ignorado pela indústria?

Ideias começaram a jorrar de algum canto da minha mente. Tomado por um furor criativo, comecei a ter flashes de um objeto branco-zirconia girando no ar, ganhando forma. Em um transe conjurei os meus conhecimentos de CAD [OpenSCAD, na verdade], e me acomodei diante da estação de trabalho, tendo à côté um monitor com a Tabela Periódica, para desenhar a minha visão do que seria um hotend de cerâmica, compatível com uma impressora Sethi – a minha.

Muitas horas insones depois eu tinha o esboço de meu pequeno mas intrépido objeto, de formas inusuais para um hotend, bastante apartado da aparência do heatsink convencional com seus discos metálicos empilhados. A condução do calor é muito menor na cerâmica, tornando dispensável uma grande área de dissipação de calor, o que permite alguma liberdade no desenho. As opções de textura e cor do material [que tal um cor-de-rosa para março?] adicionam ainda outra dimensão estética. O hotend pode ser uma peça bonita, afinal.

Não demorou muito – apenas alguns dias – para eu perceber a razão de não haver objetos de cerâmica amplamente disponíveis no mercado, além de peças de toillete. Provavelmente também explica o – interessante e bem a propósito deste post – formato do hotend primevo pensado pela Sethi em 2013 . Os métodos conformação cerâmica tradicionais não permitem grandes devaneios estilísticos e/ou intrincados detalhes anatômicos.

Sem meios tecnológicos para se desvencilhar totalmente da tradição, até bem pouco tempo atrás os ceramistas, mesmo os avançados, se restringiam a objetos simples como anéis e tubos, fabricados por metodos como slip cast, injeção pressurizada, moldagem a seco sob pressão e outros métodos industriais de escala. Para construir uma pequena peça para um instrumento de precisão como uma impressora 3D, cerâmica não parece mesmo ser uma escolha razoável.

Geleia de cerâmica

Entra o sol-gel, um processo que eu havia estudado bastante nos meses anteriores ao meu insight e que eu sabia ser uma possível resposta ao problema de se fazer mecânica fina com cerâmica; de criar objetos cerâmicos com grande complexidade estrutural.

A química sol-gel é a preparação de polímeros inorgânicos ou cerâmicas a partir de uma solução, através da transformação de precursores líquidos, primeiro em um ‘sol’ [de SOLução] e, finalmente, em uma estrutura de rede chamada ‘gel’.

A formação de um sol ocorre através de hidrólise/condensação das partículas, mas um sol pode ser definido mais geralmente como uma suspensão coloidal, o que abrange uma ampla gama de sistemas. A União Internacional de Química Pura e Aplicada (IUPAC) define um sistema coloidal como uma dispersão de uma fase em outra onde, “as moléculas ou partículas polimoleculares dispersas em um meio têm, pelo menos em uma direção, uma dimensão entre 1 nm e 1 μm”. O leite e a maionese são exemplos de colóides.

Inúmeros trabalhos científicos têm sido escritos sobre o processo sol-gel em geral e a sua aplicação no campo das cerâmicas avançadas – ver bibliografia recomendada. Se você se lembra dos tijolos de revestimento do ônibus espacial, eles são fabricados por processos análogos a este.

Moldagem de Gel – gel casting

Os métodos de conformação cerâmica são classificados em processos de conformação a seco ou úmidos. A moldagem em gel que usamos é uma tecnologia de conformação úmida desenvolvida pelo Oak Ridge National Laboratory (ORNL), um método capaz de produzir cerâmicas de alta densidade com formas complexas, near net shape [fundição próxima da forma final]. Tem as vantagens de ter um tempo de moldagem curto, sem restrições quanto ao material de molde, uma alta resistência enquanto não sinterizado [“em verde”] e a capacidade de se aplicar seções de espessura variada.

Moldes unitários de plástico
Moldes unitários em que os protótipos foram desenvolvidos – Imagem: Triforma – CC-BY-SA-NC

Note que o método de moldagem de gel permite o uso de praticamente qualquer material para a conformação das massas cerâmicas. Isso abre uma nova e ampla avenida para a utilização de impressoras 3D não mais apenas como prototipadoras, mas como insumos ativos e muito produtivos para a manufatura de cerâmica avançada, por sua capacidade de produzir diretamente, in situ, moldes complexos de forma barata.

Isso inclui totalmente as impressoras FDM. No gelcasting, as características marcas estratificadas da impressão do molde são transferidas fielmente para as peças moldadas. Eu pretendo incorporar isso como identidade visual das peças, revelando sua origem. Outros preferirão, compreensivelmente, moldes absolutamente perfeitos e regulares impressos em SLA ou ainda usinados em aço inox.

De qualquer forma, há um enorme salto de produtividade/lucratividade para qualquer impressora FDM quando um molde de ABS que ela leva 2 horas para depositar passa a servir para replicar milhares de peças cerâmicas de alta performance em curto tempo.

Este projeto

No processo que estamos implementando, preparamos géis de base aquosa, em que o pó cerâmico [zirconia + ítrio, entre outros] é primeiro disperso em água. Em seguida, agentes gelificantes – monômero(s) e iniciador(es) – são adicionados e misturados para formar uma suspensão coloidal, como descrito anteriormente, que é depois despejada no molde de plástico ABS – impresso em 3D – e deixada para secar e formar um corpo verde. Após essa etapa, o corpo verde é desmoldado, submetido a uma secagem adicional e à sinterização a alta temperatura. Depois de sinterizado, o material passa pelo tratamento final em que é usinado e esmaltado.

Gelcasting propriamente dito.
Conformação da solução nos moldes plásticos. O molde em segundo plano já está fechado em processo de cura do gel/secagem – Imagem: Triforma – CC-BY-SA-NC

Até pouco tempo atrás a acrilamida (AM) era comumente usada como agente gelificante. No entanto, devido à neurotoxicidade da AM a moldagem em gel não teve como ser aproveitada em larga escala na indústria. Isso prejudicou o desenvolvimento dessa técnica e é também, em parte, responsável pela relativa escassez de objetos complexos feitos em cerâmica no mercado. O processo de modagem de gel que utilizamos neste projeto é baseado em polímeros naturais, como a agarose, o que remove os impedimentos para o aproveitamento da tecnologia.

Chega a ser poético que uma tecnologia tão antiga como a cerâmica possa ainda ser o que há de mais avançado que existe em termos de materiais. Faço parecer fácil, mas o esforço demandou meses de aprendizado teórico e prático.

No final, tenho um produto que penso ser inovador, um pequeno elemento térmico com apenas 10 g, cuja aparentemente frágil estrutura é capaz de suportar temperaturas acima de 2300° e transmitir apenas 1,7 W/mK do calor gerado. Para comparação, o titânio suporta temperaturas dessa ordem, mas tem uma condutividade térmica bem mais alta de 25 W/mK; já o teflon é um ótimo isolante, transmitindo apenas 0,2 W/mK do calor, mas não suporta temperaturas acima de meros 240°. Portanto, a baixa condutividade térmica do sistema zirconia-itrio em tese é capaz de mitigar o heat creep, e deve tornar o hotend capaz de imprimir qualquer tipo de filamento.

Como vantagens adicionais, o processo usa menos energia, não gera ruído em nenhuma fase da produção e não deixa efluentes significativos. E eu já disse que a unidade pesa apenas 10 gramas?

Para a segunda fase do projeto vale a pena incorporar um heatbreak de zirconia-magnésia à estrutura de cerâmica para reforçar ainda mais o conjunto. Poderemos chegar até onde o bloco quente aguentar. Li sobre um grupo japonês que trabalha um hotend para 850 graus. Extrusar um fio de cobre em minha impressora Sethi desktop parece um objetivo plenamente factível.

Um heatbreak cerâmico junto ao seu molde.
Um heatbreak cerâmico — e seu pequeno molde — para alcançar os 850°. Imagem: Triforma – CC-BY-SA-NC

Mas é agora que os problemas começam.

Testes

No momento em que escrevo estou rodeado de material de laboratório recém adquirido [beakers, erlenmeyers, provetas, balança, agitador magnético, substâncias diversas…]. O que é para ser o germe de uma empreitada industrial está a parecer, dependendo do espectador, uma sala de alguma pharma, ou um laboratório de análises rápidas da Aduana. Estou prestes a começar este experimento divisor de águas: fazer o processo descrito acima funcionar de forma consistente para a produção em série.

Preciso agora ir além do processo formal descrito e dos poucos protótipos obtidos com moldes unitários. É necessaŕio fazer também um grande número de testes de composição química, formulação, além de testes mecânicos destrutivos e de performance.

Se eu for bem sucedido e conseguir produzir em quantidade razoável a custo razoavelmente baixo, o que acredito ser totalmente possível, vou disponibilizar o produto sob venda direta no site de minha nova iniciativa empreendedora, a Triforma – em breve no ar. Penso reproduzir o modelo de negócio da Slice Engineering, licenciando OpenSource. Quero muito de ter um produto minimamente viável em meados de abril. Vou trabalhar para isso.

Divulgarei por aqui os resultados deste projeto. Mantenha contato visual.

(*) Citei a Sethi 3D um par de vezes neste texto. Declaro não ter nenhum vínculo com essa ilustre empresa campineira além do de cliente [satisfeito]. Mas claro que eu gostaria de ter. Respeito toda iniciativa industrial, principalmente se a) ligada à alta tecnologia; b) localizada no Brasil, caso em que o respeito se transforma em descombobulada admiração. 🙂

Leituras recomendadas:

Sol-gel

https://pt.wikipedia.org/wiki/Sol-gel

Formulação de Materiais Cerâmicos

Link para o PDF

Sol-Gel Chemistry and Methods

Link para o PDF

Gel Casting of Ceramic Bodies

https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1002/9781118176665.ch6

The evolution of ‘sol–gel’ chemistry as a technique for materials synthesis

https://pubs.rsc.org/en/content/articlehtml/2016/mh/c5mh00260e

Thermal Properties of Ceramics

Link para o PDF

A review on aqueous gelcasting: A versatile and low-toxic technique to shape ceramics

https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0272884218334606