Tirem os Políticos das Redes!

Combater a mentira deixou de ser algo que se faz por nobreza de caráter, com propósitos ideológicos ou cívicos, e se tornou um ato positivo, concreto, contra a sua utilização como ferramenta para desmantelar o bem político e social.

tirem os políticos das redes
Imagem: pexels.com

A jurisprudência da liberdade de expressão teve origem na cláusula de debate [link em inglês, sorry] da Constituição americana, concebida originalmente como um instrumento para garantir aos representantes do povo imunidade contra achaques baseados na expressão de suas ideias no curso dos trabalhos legislativos. Mas hoje metastatizou para todo o corpo social na forma de lesões e feridas.

A cláusula de debate funcionava bem quando a informação político-institucional era difundida por telégrafo e publicações regionais, como jornais e periódicos. Agora, no século XXI, com cada representante eleito a ter nas mãos uma plataforma de publicação, a capacidade de levar o discurso para fora do contexto clássico tem dois efeitos interessantes: 1) os representantes mudam seu comportamento para (retro)alimentar as plataformas, e 2) as plataformas funcionam 24 horas por dia, 7 dias por semana, 365 dias por ano, induzindo representantes desonestos e de má-fé a aplicar as cláusulas de discurso e debate de forma falsa e abusiva, ao mesmo tempo que as vinculam, como garantia, a todas as suas atividades.

Assim, a atividade política se desvia cada vez mais dos atos constitucionais de mandato, e se torna cada vez mais um auto-serviço à sua própria causa e agenda.

O remédio

Defendo a noção de que os políticos que atuam como funcionários do governo, ou representantes do povo em quaisquer esferas e em qualquer capacidade devem [por força da lei] comunicar principalmente através de canais oficiais, em vez de dependerem de plataformas de redes sociais, e que a sua presença nas redes sociais pode ser considerada um abuso de poder.

1. Os canais oficiais garantem transparência e responsabilização: Quando os políticos comunicam através de canais oficiais, como websites governamentais, comunicados de imprensa ou declarações oficiais, existe um certo nível de responsabilização e transparência. Esses canais muitas vezes passam por escrutínio e seguem protocolos específicos, garantindo que as informações sejam precisas, verificadas e alinhadas com as políticas governamentais. Esta transparência é crucial para manter a confiança entre o governo e o público.

2. Igualdade de acesso para todos os cidadãos: Os canais oficiais proporcionam igualdade de acesso à informação para todos os cidadãos. Nem todos têm acesso ou utilizam plataformas de redes sociais, e depender apenas delas para a comunicação pode excluir segmentos da população, especialmente aqueles provenientes de meios socioeconômicos mais baixos ou de grupos demográficos mais idosos. Ao utilizar canais oficiais, os políticos garantem que as suas mensagens cheguem a um público mais vasto, independentemente da sua presença nas redes sociais.

3. Preservação da integridade institucional: Os governos baseiam-se em instituições e protocolos estabelecidos. A comunicação através dos canais oficiais respeita estas instituições e mantém a sua integridade. Quando os políticos ignoram os canais oficiais em favor dos meios de comunicação social, podem minar os processos e estruturas estabelecidos, levando à confusão ou mesmo à erosão da confiança pública nas instituições governamentais.

4. Mitigar a desinformação e a má comunicação: Os canais oficiais envolvem frequentemente uma equipe de especialistas que garantem que a informação é precisa, consistente e desprovida de desinformação. As plataformas de redes sociais, por outro lado, são suscetíveis à rápida disseminação de rumores, notícias falsas e desinformação. Ao utilizarem principalmente canais oficiais, os políticos podem ajudar a mitigar a propagação de informações falsas e garantir que o público receba informações fiáveis e verificadas.

5. Prevenir agendas e preconceitos pessoais: As plataformas de redes sociais muitas vezes confundem os limites entre as opiniões pessoais e as declarações oficiais. Os políticos podem utilizar as redes sociais para promover agendas ou preconceitos pessoais, o que pode ser prejudicial ao processo democrático. Ao comunicarem através dos canais oficiais, é mais provável que os políticos apresentem informações de uma forma neutra e imparcial, centrando-se nos interesses do público e não nos interesses pessoais ou partidários.

Embora as redes sociais tenham potencial para ser uma ferramenta valiosa para a comunicação, os políticos que atuam como funcionários do governo devem confiar principalmente nos canais oficiais para garantir a transparência, a igualdade de acesso, a integridade institucional, a precisão e a neutralidade. A dependência excessiva das redes sociais pode, de fato, ser vista como um abuso de poder, uma vez que pode contornar protocolos e instituições estabelecidas, conduzindo potencialmente à desinformação e comprometendo os princípios democráticos.

As ‘Notícias’ Não São Boas

Cresci acreditando que acompanhar as “notícias” faz de você um cidadão melhor. Oito anos depois de ter desistido da esgotosfera, essa ideia agora me parece ridícula.

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Estou a falar aqui principalmente sobre acompanhar os noticiários nas TVs comerciais e nas infames redes sociais. Ressalvo que este post não é uma acusação ao jornalismo como um todo. Reconheço que há um grande valor em investir tempo lendo um artigo analítico de 5.000 palavras em uma publicação de alto nível, como por exemplo as excelentes publicações inglesas Unherd, ByLineTimes e suas equivalentes em outros países e línguas, o que eu faço diariamente.

O que descobri nesses anos de exílio das redes sociais é que, se você parar de acompanhar as mídias de baixo nível [Facebook, WhatsApp, CNN, Globo, etc, etc.], mesmo que por apenas um mês, o hábito de consumir notícias vindas desses meios começa a parecer bastante feio e desnecessário, não muito diferente de como um fumante só percebe o cheiro ruim do tabaco quando ele para de fumar.

Nesta postagem uma faço uma pequena lista de algumas coisas que você vai notar se você fizer uma pausa no consumo de lixo informático digital.

A) Alívio na ansiedade

Uma coisa comum que você sente ao desistir da esgotosfera é uma melhora no humor. Seus amigos viciados em smartphones dirão que você é anti social, ou que você enfiou a cabeça na areia. Eles não percebem que o que você pode obter sobre o mundo a partir das “notícias” não chega nem perto de ser uma amostra representativa do que está realmente acontecendo no mundo. Os produtores comerciais de notícias não estão interessados em criar um retrato fiel do mundo. Eles apenas selecionam o que é a) incomum, b) horrível e c) popular. Portanto, a ideia de que você pode ter uma noção significativa do “estado do mundo” assistindo às “notícias” é absurda.

Os editores de jornais populares [isto é, TODOS] exploram nosso viés de negatividade. Evoluímos para prestar atenção ao que é assustador e irritante, mas isso não significa que o medo ou a raiva sejam úteis. Uma vez que você para de assistir, fica óbvio que o objetivo principal das reportagens é agitar e consternar o espectador.

O que aparece no noticiário não é “o portfólio de preocupações da pessoa conscienciosa”. O que aparece é o que vende, e o que vende é o medo e o desprezo por outros grupos de pessoas.

Faça seu próprio portfólio de notícias. Você vai obter melhores informações sobre o mundo de fontes mais profundas – que redigem as noticias, ao invés de “agregá-las”. Noto aqui que, pelos meus padrões, nenhuma publicação brasileira se encaixa nessa matriz [isso inclui o outrora venerável Estadão].

B) Você nunca realiza algo útil assistindo ao noticiário

Se você perguntar a alguém o que eles verdadeiramente realizam assistindo ao noticiário, ou a que conclusões eles chegam, ouvirá noções vagas como: “É nosso dever cívico nos manter informados!” ou “Preciso saber o que está acontecendo no mundo” ou “Não podemos ignorar esses problemas” – nada disso responde ao que foi perguntado.

“Estar informado” soa como uma realização, mas também implica que qualquer informação serve. Para certas pessoas é possível se informar lendo uma tabela de horário de ônibus.

Um mês depois de deixar as “notícias”, você vai perceber que é difícil citar algo útil que foi perdido. Torna-se claro que aqueles anos de acompanhamento das “notícias” não representaram praticamente nada em termos de melhoria na sua qualidade de vida, ou de conhecimentos duradouros, ou sua capacidade de ajudar os outros. E isso sem falar no custo de oportunidade. Imagine se você gastasse o mesmo tempo aprendendo um idioma ou lendo livros e ensaios sobre os mesmos assuntos que eles mencionam nos noticiários.

Você descobrirá que sua abstinência das “notícias” não resultou em eventos políticos piores do que os que já estavam acontecendo, e que coisas como esforços de socorro em desastres ou o combate à fome continuaram sem o seu envolvimento, como sempre. A conclusão é que seu tempo perdido em monitorar o “estado do mundo” na verdade não afetou o mundo e nem mudou nada. Herdamos de algum lugar – talvez da época em que havia apenas uma hora de notícias por dia – a crença de que ter uma consciência superficial das questões mais populares do dia é de alguma forma útil para aqueles mais afetados por elas.

C) Conversas relacionadas a eventos do noticiário = pessoas falando besteiras

Quando você para de fazer o jogo dos produtores comerciais de “notícias” diárias e observa atentamente as pessoas falando sobre os “acontecimentos”, você vai perceber que quase ninguém sabe realmente do que está falando.

Há um abismo extraordinário entre ter uma compreensão funcional de um problema e o olhar superficial que você recebe das mídias populares. Se você se deparar com uma conversa no bebedouro do escritório sobre um assunto que você por acaso conhece muito, você verá as pessoas estão dispostas a falar com ousadia sobre questões sobre as quais nada entendem. Sabemos que é irresistível fazer comentários agressivos e tomar posições duras, mesmo quando estamos errados, e as “notícias” das TVs e do Facebook nos dão a forragem perfeita para isso. Quanto menos você souber sobre um assunto, mais fácil será fazer declarações ousadas sobre ele.

D) Existem maneiras melhores de “ser informado”

Todos nós queremos viver em uma sociedade bem informada. As notícias informam as pessoas, mas quase nunca as informam particularmente bem. Existem muitas fontes de “informação”. A parte de trás do seu frasco de xampu contém “informações”. Em 2022 há muito mais informação por aí do que podemos absorver, então é preciso escolher bem o que merece nosso tempo. As “notícias” fornecem informações em volume quase infinito, mas com profundidade muito limitada, e claramente pretendem nos agitar mais do que nos educar.

Cada minuto gasto consumindo notícias é um minuto em que você fica indisponível para aprender coisas úteis sobre o mundo de outras maneiras. Os brasileiros provavelmente acompanham no Whatsapp e Facebook milhões de horas de cobertura de notícias todos os dias. Isso é uma enorme quantidade de livros não lidos.

Leia três livros sobre um assunto e você saberá mais sobre esse assunto do que 99% do mundo. Se nos preocupamos apenas com a amplitude da informação, e não com a profundidade, não há muita diferença entre “manter-se informado” e “permanecer mal informado”.

E) “Estar preocupado” nos faz sentir como se estivéssemos fazendo algo

As “notícias” são sempre sobre injustiças e catástrofes, e naturalmente nos sentimos desconfortáveis ao ignorar histórias nas quais as pessoas estão sofrendo. Por mais superficiais que os noticiários de TV possam ser, as questões relatadas neles são (geralmente) reais. Muito mais reais do que podem parecer através de uma televisão ou de um smartphone. As pessoas estão sofrendo e morrendo, o tempo todo, e ignorar uma representação desse sofrimento, mesmo uma representação cínica e manipuladora, nos faz sentir culpados.

Então pensamos: “o mínimo que podemos fazer é não ignorar isso”. Então lá estamos nós a assistir à cobertura da tragédia na TV, com os olhos lacrimejantes e com um nó na garganta. Mas o fato é que ficar nesse nível de “preocupação” não vai ajudar ninguém – vai apenas, talvez, aliviar um pouco nossa própria culpa.

E eu me pergunto se há uma espécie de “efeito de substituição” em ação aqui. A sensação, e a falsa crença, de que “pelo menos eu me importo” pode, na verdade, nos impedir de fazer algo concreto para ajudar ou influir nos acontecimentos, porque, ao observar com simpatia, não precisamos confrontar a realidade de que não estamos fazendo absolutamente nada a respeito do que estamos vendo.

Observar os desenvolvimentos de um desastre, mesmo quando não fazemos nada, pelo menos parece um pouco mais compassivo do que desligar. A verdade é que a grande maioria de nós não dará absolutamente nenhuma ajuda às vítimas das atrocidades que acontecem neste mundo, sejam elas televisionadas ou não. E isso é difícil de aceitar em um nível básico de consciência. Mas se pudermos pelo menos mostrar preocupação, neste mundo regido pelas aparências, podemos permanecer não envolvidos sem nos sentirmos não envolvidos.

Esta talvez seja a maior razão pela qual tememos nos desligar das notícias. E também pode ser a melhor razão para fazê-lo.

A Crise das Redes: Como Administrar o Comportamento Coletivo Global

Abrimos esta semana apresentando em português o necessário estudo “Administração do Comportamento Coletivo Global”, sobre o que eu pessoalmente caracterizo como a Crise das Rede Sociais. A sociedade humana nunca teve que lidar com entidades tão potentes, com tão grande potencial desagregador, tão desconhecidas e tão incompreendidas. Estamos em um momento-chave da civilização, e o que fizermos nesta década definirá o caminho da espécie humana por séculos.

A ‘Economia da Atenção’ tem facilitado comportamentos extremos e provocado rupturas políticas e culturais. Sua influência na opinião pública exibe uma escala sem precedentes na evolução da civilização. Imagem: iStock

Introdução

O comportamento coletivo fornece uma estrutura para a compreensão de como as ações dos grupos emergem naturalmente do compartilhamento de informações. Em humanos, os fluxos de informação foram inicialmente moldados pela seleção natural, mas são cada vez mais estruturados por tecnologias de comunicação emergentes. Nossas redes sociais maiores e mais complexas agora movimentam informações de alta fidelidade, através de grandes distâncias, a baixo custo. A era digital e a ascensão das mídias sociais aceleraram as mudanças em nossos sistemas sociais, com consequências funcionais ainda mal compreendidas. Essa lacuna em nosso conhecimento representa o principal desafio para o progresso científico, para a democracia e para as ações de enfrentamento das crises globais. Argumentamos que o estudo do comportamento coletivo deve ser elevado a uma “disciplina de crise”, assim como a medicina, a conservação e a ciência do clima, e ter foco em fornecer uma visão prática para a administração dos sistemas sociais destinada aos formuladores de políticas públicas bem como os reguladores.

Comportamento coletivo se refere às instâncias em que grupos exibem ação coordenada na ausência de um líder óbvio: de bilhões de gafanhotos, estendendo-se por centenas de quilômetros, devorando a vegetação à medida que avançam; de cardumes de peixes convulsionando como um fluido animado quando sob ataque de predadores às nossas próprias sociedades, caracterizadas por cidades, com edifícios e ruas cheias de cor e som, vivas de atividade. A característica comum de todos esses sistemas é que as interações sociais entre os organismos individuais dão origem a padrões e estruturas em níveis mais elevados de organização, desde a formação de vastos grupos nômades até o surgimento de sociedades baseadas na divisão de trabalho, normas sociais, opiniões, e dinâmica de preços.

Nas últimas décadas, o “comportamento coletivo” evoluiu de uma descrição de fenômenos gerais para uma estrutura conduciva à compreensão dos mecanismos pelos quais a ação coletiva emerge (3⇓⇓⇓-7). Ele revela como as propriedades de “ordem superior” das estruturas coletivas em grande escala, se retroalimentam para influenciar o comportamento individual, que por sua vez pode influenciar o comportamento do coletivo, e assim por diante. O comportamento coletivo, portanto, se concentra no estudo de indivíduos no contexto de como eles influenciam e são influenciados pelos outros, levando em consideração as causas e consequências das diferenças interindividuais em fisiologia, motivação, experiência, objetivos e outras propriedades.

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As interações multiescala e o feedback que fundamentam o comportamento coletivo são marcas definidoras de “sistemas complexos” – que incluem nosso cérebro, redes de energia, mercados financeiros e o mundo natural. Quando perturbados, os sistemas complexos tendem a exibir uma resiliência finita seguida por mudanças catastróficas, repentinas e muitas vezes irreversíveis na sua funcionalidade. Em uma ampla gama de sistemas complexos, a pesquisa destacou como a perturbação antropogênica – tecnologia, extração de recursos e crescimento populacional – é uma fonte crescente, se não dominante, de risco sistêmico. No entanto, a pesquisa científica sobre como os sistemas complexos são afetados pela tecnologia humana e pelo crescimento populacional tem se concentrado mais intensamente nas ameaças que eles representam para o mundo natural.

Temos uma compreensão muito mais pobre das consequências funcionais das recentes mudanças em grande escala no comportamento humano coletivo e na tomada de decisões. Nossas adaptações sociais evoluíram no contexto de pequenos grupos de caçadores-coletores resolvendo problemas locais por meio de vocalizações e gestos. Em contraste, agora enfrentamos desafios globais complexos, de pandemias a mudanças climáticas – e nos comunicamos em redes dispersas conectadas por tecnologias digitais, como smartphones e mídias sociais.

Com ligações cada vez mais fortes entre os processos ecológicos e sociológicos, evitar a catástrofe a médio prazo (por exemplo, coronavírus) e a longo prazo (por exemplo, mudança climática, segurança alimentar) exigirá respostas comportamentais coletivas rápidas e eficazes – ainda não se sabe se a dinâmica social humana permitirá tais respostas.

Além das ameaças ecológicas e climáticas existenciais, a dinâmica social humana apresenta outros desafios ao bem-estar individual e coletivo, como recusa de vacinas, adulteração de eleições, doenças, extremismo violento, fome, racismo e guerra.

Nenhuma das mudanças evolutivas ou tecnológicas em nossos sistemas sociais ocorreu com o propósito expresso de promover a sustentabilidade global ou a qualidade de vida. Tecnologias recentes e emergentes, como mídia social online, não são exceção – tanto a estrutura de nossas redes sociais quanto os padrões de fluxo de informações por meio delas são direcionados por decisões de engenharia feitas para maximizar a lucratividade. Essas mudanças são drásticas, opacas, efetivamente não regulamentadas e de grande escala.

Disciplina de Crise

As consequências funcionais emergentes são desconhecidas. Não temos a estrutura científica necessária para responder até mesmo às questões mais básicas que as empresas de tecnologia e seus reguladores enfrentam. Por exemplo, será que um determinado algoritmo para recomendar amigos – ou um para selecionar itens de notícias a serem exibidos – promove ou impede a disseminação de desinformação online? Não temos um corpo de literatura embasado teoricamente e verificado empiricamente para informar uma resposta a tal pergunta. Na falta de uma estrutura desenvolvida, as empresas de tecnologia se atrapalharam com a pandemia de coronavírus em curso, incapazes de conter a “infodemia” de desinformação que impede a aceitação pública de medidas de controle, como máscaras e testes generalizados.

Em resposta, os reguladores e o público têm insistido nos pedidos de reforma do nosso ecossistema de mídia social, com demandas que vão desde maior transparência e controles de usuário até responsabilidade legal e propriedade pública. O debate básico é antigo: os processos comportamentais em grande escala são autossustentáveis ​​e autocorretivos, ou requerem gerenciamento e orientação ativos para promover o bem-estar sustentável e equitativo? Historicamente, essas questões sempre foram tratadas em termos filosóficos ou normativos. Aqui, construímos nossa compreensão dos sistemas complexos perturbados para argumentar que não se pode esperar que a dinâmica social humana produza soluções para questões globais ou promova o bem-estar humano sem uma política baseada em evidências e administração ética.

A situação é paralela aos desafios enfrentados na biologia da conservação e na ciência do clima, onde indústrias insuficientemente regulamentadas otimizam os seus lucros enquanto minam a estabilidade dos sistemas ecológicos. Tal comportamento criou a necessidade de uma política urgente baseada em evidências, na falta de uma compreensão completa da dinâmica subjacente dos sistemas (por exemplo, ecologia e geociências). Essas características levaram Michael Soulé a descrever a biologia da conservação como o contraponto da “disciplina de crise” à ecologia. As disciplinas de crise são distintas de outras áreas de pesquisa urgente baseada em evidências em sua necessidade de considerar a degradação de todo um sistema complexo – sem uma descrição completa da dinâmica do sistema. Sentimos que o estudo do comportamento humano coletivo deve se tornar a resposta da disciplina de crise às mudanças em nossa dinâmica social.

Como o comportamento humano coletivo é o resultado de processos que abrangem escalas temporais, geográficas e organizacionais, abordar o impacto da tecnologia emergente no comportamento global exigirá uma abordagem transdisciplinar e um colaboração sem precedentes entre cientistas em uma ampla gama de disciplinas acadêmicas. À medida que nossas sociedades são cada vez mais instanciadas na forma digital, abstrações de processos sociais – as redes são um exemplo proeminente – tornam-se partes muito reais da vida diária. Essas mudanças apresentam novos desafios, bem como oportunidades, para avaliação e intervenção. Disciplinas dentro e fora das ciências sociais têm acesso a técnicas e formas de pensar que expandem nossa capacidade de entender e responder aos efeitos da tecnologia de comunicação. Acreditamos que tal colaboração é urgentemente necessária.

Ler artigo original na íntegra:

Stewardship of Global Collective Behavior

Joseph B. Bak-Coleman, Mark Alfano, Wolfram Barfuss, Carl T. Bergstrom, Miguel A.
Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America

Verdades, Mentiras e Automação

Sob licença, apresentamos a seguir, traduzido e adaptado, um muito temporâneo estudo publicado no último dia 21 pelos autores Ben Buchanan, Andrew Lohn, Micah Musser e Katerina Sedova, do Centro para Segurança e Tecnologia Emergente (CSET – Center for Security and Emerging Technology), analisando o terrivel problema da desinformação turbinada por tecnologias de “Inteligência Artificial” (mais propriamente referida como Aprendizado de Máquina). O texto é narrado na primeira pessoa do plural

Por milênios, campanhas de desinformação têm sido empreendimentos fundamentalmente humanos. Seus perpetradores misturam verdades e mentiras em potentes combinações, que visam semear a discórdia, criar dúvidas e provocar ações destrutivas. A campanha de desinformação mais famosa do século XXI – o esforço russo para interferir na eleição presidencial dos EUA de 2016- contou com centenas de pessoas trabalhando juntas para ampliar as fissuras preexistentes na sociedade americana.

Desde o início, escrever sempre foi um esforço fundamentalmente humano. Mas as coisas não são mais assim. Em 2020, a empresa OpenAI revelou o GPT-3, (Generative Pre-trained Transformer) um poderoso sistema de “inteligência artificial” que gera texto baseado em um estímulo provocado por operadores humanos. O sistema, que combina uma vasta rede neural, um poderoso algoritmo de aprendizado de máquina e mais de um trilhão de palavras de escrita humana para orientação, é notável. Entre outras realizações, ele já redigiu um artigo de opinião encomendado pelo The Guardian, escreveu histórias originais que a maioria dos leitores pensava ter sido escrita por humanos e criou novos memes para a Internet.

Diante dessa descoberta, consideramos uma questão simples, mas importante: pode a automação gerar conteúdo para campanhas de desinformação? Se o GPT-3 pode escrever notícias aparentemente confiáveis, é possível também que possa escrever notícias falsas convincentes; se pode redigir artigos de opinião, talvez possa redigir tweets enganosos.

Para resolver esta questão, primeiro apresentamos o conceito de parceria ou equipe homem-máquina, mostrando como o poder do GPT-3 deriva, em parte, do estímulo criado pelo homem, ao qual ele responde. Ganhamos acesso gratuito ao GPT-3 – um sistema que não está disponível para uso público – para estudar a capacidade do GPT-3 de produzir desinformação como parte de uma equipe homem-máquina.

Mostramos que, embora o GPT-3 seja bastante capaz por seus próprios méritos, ele atinge novos patamares de capacidade quando combinado com um operador/editor humano experiente. Como resultado, concluímos que, embora o GPT-3 não substitua totalmente os humanos nas operações de desinformação, ele é uma ferramenta que pode ajudar a criar mensagens de qualidade moderada a alta, em uma escala muito maior do que anteriormente possível.

Para chegar a esta conclusão, avaliamos o desempenho do GPT-3 em atividades que são comuns em muitas campanhas de desinformação modernas. A Tabela 1 descreve essas tarefas e o desempenho do GPT-3 em cada uma.

Tabela 1

Entre essas e outras avaliações, o GPT-3 provou ser tão poderoso como limitado. Quando estimulada de maneira adequada, a máquina funciona como um gravador versátil e eficaz que, no entanto, é limitado pelos dados nos quais foi treinada. Sua redação é imperfeita, mas essas suas desvantagens – como falta de foco na narrativa e tendência a adotar pontos de vista extremos – têm pouca importância na criação de conteúdo para campanhas de desinformação.

Caso os adversários optem por empregar esse tipo de automação em suas campanhas de desinformação, acreditamos que a implantação de um algoritmo como o GPT-3 esteja dentro da capacidade de governos estrangeiros, especialmente os que entendem de tecnologia, como China e Rússia. Será difícil, mas quase certamente possível para esses governos construir a capacidade computacional necessária para treinar e operar tal sistema, caso desejem fazer isso.

Mitigar os perigos da automação na desinformação é um desafio. Uma vez que o texto produzido pela GPT-3 combina tão bem com a escrita humana, a melhor maneira de impedir o uso de sistemas como o GPT-3 em campanhas de desinformação é se concentrar na infraestrutura usada para propagar as mensagens da campanha, como contas falsas nas redes sociais, em vez de tentar determinar a quem atribuir o texto.

Vale a pena considerar as mitigações porque nosso estudo mostra que há uma possibilidade real de se usar ferramentas automatizadas para gerar conteúdos para campanhas de desinformação. Em particular, nossos resultados devem ser encarados como uma estimativa pessimista do que sistemas como o GPT-3 podem oferecer. Adversários não limitados por preocupações éticas e estimulados por grandes recursos e capacidade técnica, provavelmente serão capazes de usar sistemas como o GPT-3 de maneira mais abrangente do que nós nesta pesquisa, embora seja difícil saber se eles realmente vão optar por essa linha de ação.

Em particular, com a infraestrutura certa, eles provavelmente serão capazes de aproveitar a escalabilidade que tais sistemas automatizados oferecem, gerando um grande número de mensagens e inundando o cenário de informações com as criações mais mirabolantes.

Nosso estudo mostra a plausibilidade – mas não a inevitabilidade – desse futuro, no qual mensagens automatizadas de divisão política e informações enganosas se propagam pela Internet. Enquanto mais desenvolvimentos ainda certamente estejam por vir, um fato já é aparente: as máquinas construídas por humanos agora podem ajudar a temperar a verdade e a mentira a serviço da desinformação.

Publicado sob a licença Creative Commons nc 4.0

Link para o trabalho original, na íntegra:

Sobre Democracia, Fake News e Amigos

Sou um racionalista hard-core, com um espírito curioso, voltado à honesta busca da verdade final. A existência desse conceito absurdo de “notícia falsa” (tal como o conhecemos agora) em pleno século vinte e um, é algo que literalmente me deprime e me faz duvidar de minha fé na humanidade. Com a evolução da crise da Covid, e depois de perder um número proibitivamente alto de amigos em virtude das controvérsias geradas por elas, sinto que o problema começa a afetar seriamente a minha esfera pessoal. Paladino da Ciência que sou, e para acalmar os meus sentidos, decidi empreender uma pesquisa – que eu chamaria de sistemática – da literatura sobre Fake News, a qual compartilho a seguir, no mui adequado formato de ‘prosa blogueana’.

As fake news costumam ser estudadas ao longo de quatro linhas principais: caracterização, criação, circulação e combate. O exato modelo de como caracterizar notícias falsas tem sido muito debatido na academia, uma vez que a definição do termo é ainda controversa. Diferentes tipos de noticias falsas têm diferentes gradações entre intenção e facticidade. Quanto às outras linhas de pesquisa, aquelas voltadas à criação dizem respeito à produção de notícias falsas, frequentemente com motivação financeira, política ou social. As dedicadas à circulação de notícias falsas referem-se às diferentes maneiras pelas quais as informações falsas são disseminadas e amplificadas, geralmente por meio de tecnologias de comunicação, como mídias sociais e mecanismos de busca. Por último, o combate às notícias falsas aborda a multiplicidade de técnicas para detectar e combatê-las em diferentes níveis, levando-se em conta desde os aspectos jurídicos, financeiros e técnicos até a alfabetização individual em mídia e informação e novos serviços de verificação de fatos.

Fake News foi eleita a palavra [ou expressão] do ano em 2017 pelo Dicionário Collins. Em 2017, o uso do termo havia aumentado 365% com relação à 2016 (Dicionário Collins, 2017). A eleição presidencial americana em 2016 colocara o fenômeno na agenda internacional.

Mas embora o termo pareça relativamente novo, os fenômenos que ele cobre são antigos. Manipulação, desinformação, falsidade, rumores, teorias da conspiração – ações e comportamentos frequentemente associados ao termo – existem desde que os humanos se comunicam. A novidade do termo, neste contexto, está relacionada à forma como as informações falsas ou enganosas são produzidas, distribuídas e consumidas por meio da tecnologia de comunicação digital.

Fiz um apanhado da literatura, e inúmeros trabalhos sobre o tema, escritos desde o início do século vinte, vieram à tona – que, por brevidade, limito aqui a poucos exemplos:

.Em uma coluna publicada no The Atlantic em 1919, Walter Lippmann expôs uma visão abrangente dos problemas que a propaganda representava para a sociedade ocidental moderna (Sproule, 1997).

.Lippmann argumentou que a função básica da democracia era proteger as notícias – a fonte da opinião pública – da mácula da propaganda. Nenhuma sociedade moderna sem meios adequados para detectar mentiras pode se considerar livre (Lippmann, 1922).

.Sem informações confiáveis, será difícil para as democracias continuarem a funcionar. Notícias falsas e desinformação são símbolos de um problema social mais amplo: a manipulação da opinião pública para infuenciar o mundo real (Gu, Kropotov e Yarochkin, 2017).

Mas mesmo que a desinformação seja a esta altura um fenômeno histórico, cada nova tecnologia de comunicação permite novas maneiras de manipular notícias e amplificar rumores. Manter o passo alinhado com as novas tecnologias de informação digital requer novas maneiras de enfrentar os desafios; um certo pensar-fora-da-caixa. Informações falsas disfarçadas de notícias já criaram sérias preocupações materiais e humanas em muitos países. Diferentes pesquisadores a chamaram por diferentes nomes:

.Poluição da informação (Wardle & Hossein, 2017),

.Manipulação da mídia (Warwick & Lewis, 2017) ou

.Guerra de informação (Khaldarova & Pantti, 2016).

Em minhas conversas e vivências, noto que um ponto comum entre as pessoas que têm uma vida intelectual é um certo desconforto existencial, a sensação íntima e presente, de que informações falsas poluem a esfera pública e podem prejudicar a democracia de maneira imprevisivel. Conforme argumentado por Warwick e Lewis, “a manipulação das redes sociais pode contribuir para a diminuição da confiança na mídia convencional, aumento da desinformação e maior radicalização” (2017).

Além de tudo isso, políticos e outros atores poderosos se apropriaram do termo para caracterizar a cobertura negativa da mídia sobre suas ações. Mais notoriamente, e mais de uma vez, o presidente americano Donald Trump rotulou meios de comunicação como a CNN ou o The New York Times como fake news. O mesmo se dá aqui no Brasil, com o presidente engajado em uma jihad pessoal contra a mídia tradicional. Conforme relatado pelo New York Times, em países onde a liberdade de imprensa é restrita ou está sob considerável ameaça – como Rússia, China, Turquia, Líbia, Polônia, Hungria, Tailândia, Somália e outros [ahem, Brasil] – os líderes políticos já invocaram as fake news como justificativa para repelir o escrutínio da mídia. Ao sugerir que as notícias não podem ser confiáveis e ao rotulá-las como notícias falsas, os políticos deliberadamente minam a confiança no jornalismo e nos meios de comunicação, uma das principais instituições em nações democráticas baseadas na liberdade de expressão e de imprensa.

Mais pesquisas sobre a escala e o escopo da desinformação em diferentes países são necessárias para descrever com precisão a magnitude e as características do problema. Para os estudantes de jornalismo, este recente debate sobre a desinformação tem sido uma evocação valiosa das raízes de sua profissão: avaliação crítica de informações e fontes; responsabilidade e códigos de conduta ética. O aumento dos esforços pela transparência, tanto na ecologia das plataformas de informação quanto nos métodos jornalísticos, pode, a longo prazo, aumentar a confiança do público em relação a como a informação é tratada e amplificada tanto pelas plataformas sociais quanto pelas redações da mídia profissional.

Novas ferramentas e métodos – incluindo alfabetização midiática e informacional – para identificar e detectar conteúdo manipulado, seja ele texto, imagens, vídeos ou áudio, são necessários, se queremos conter as tentativas de manipulação de diferentes atores. Em vez de tentar legislar sobre o problema – que se tornou por demais politizado – ou ceder ao ímpeto repressivo, os atores políticos e as instituições devem reconhecer que têm um papel importante a desempenhar na melhoria da qualidade do ecossistema de informações, por meio do financiamento à pesquisa e do apoio à mídia independente e pelo compartilhamento de dados com o público.

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(*) Este post foi editado em 13/05 para correções de digitação e pequenos ajustes de estilo.