Era uma vez, há cerca de trinta anos, uma rede de computadores chamada America Online. Já existia uma Internet, mas a maioria das pessoas não sabia de sua existência ou sobre como usá-la. A AOL e alguns concorrentes, Compuserve e Prodigy, ofereciam às pessoas atividades simples que elas podiam fazer online, como conversar com outras pessoas. Os serviços tinham apenas uma desvantagem: eram limitados.

As pessoas não podiam fazer o que queriam, só podiam escolher o que havia em um pequeno menu de funções que os serviços disponibilizavam.
À medida que crescia e crescia, a World Wide Web se tornava um lugar incrível, em contraste com a AOL. As pessoas estavam tão empolgadas com a World Wide Web que nunca mais quiseram voltar para a AOL, Compuserve ou Prodigy. Os três serviços definharam.
Entra na história o Facebook
As pessoas ficaram entusiasmadas com o Facebook porque era um lugar onde podiam encontrar pessoas reais que elas conheciam, assim como o MySpace, mas também porque tinha alguns recursos também comuns a AOL, como o jogo Farmville. As empresas ficavam cada vez mais entusiasmadas porque o Facebook começou a gerar muita receita de publicidade.
Os anunciantes gostavam do Facebook porque ele não apenas sabia quem estava falando com quem, mas também sabia bastante sobre os hobbies e interesses das pessoas. Os anunciantes gostaram disso porque podiam agora usar as informações para “direcionar” seus anúncios como nunca antes. Acadêmicos e pundits diziam que o Facebook tinha o que é conhecido como “efeito de rede”. Ele se tornava mais poderoso quanto mais pessoas se juntavam a ele.
Acontece que havia alguns problemas com o Facebook. O Facebook era muito parecido com a AOL. Limitava as pessoas, dizendo-lhes com quem podiam se comunicar. Depois de um tempo, as pessoas não tinham mais controle. Elas haviam fornecido tantas informações íntimas para o Facebook e seus concorrentes que era como se essas empresas fossem donas das pessoas quando elas estavam no ciberespaço. Esses serviços também não pareciam fazer um bom trabalho com as informações que acumulavam sobre os usuários.
Por causa de seu notório sigilo, é difícil saber o quão consciente o Facebook está a respeito dos danos que ele causa a seus “usuários”. Por exemplo, em setembro de 2019, a Insider Magazine publicou um artigo que analisava dados do CDC [Centro de Controle de Doenças dos EUA] a respeito do suicídio de adolescentes nos Estados Unidos.
Eu me pergunto quantos desses adolescentes foram empurrados para o abismo graças a comentários descuidados no Facebook? Quantas outras Michelles Carters [link em inglês] existem por aí?
O problema mais amplo que enfrentamos como sociedade é que simplesmente não sabemos o quão nocivas as redes sociais podem ser. Esse problema das redes sociais é muito parecido com a luta que enfrentamos com as empresas de tabaco – que sempre souberam o quão prejudicial o tabaco era, mas se esforçavam para esconder a pesquisa que eles mesmos realizavam comprovando os fatos. As empresas petroquímicas também se encaixam nesse perfil, com seus próprios cientistas alertando sobre a ligação entre combustíveis fósseis e o aquecimento global.
Há um crescente corpo de evidências a nos indicar que o que o Facebook faz não é apenas algo “inofensivo” como “publicidade direcionada”. Seria muito mais preciso descrever seu modus operandi como “manipulação psicológica”. Essas evidências sugerem que, no contexto amplo da sociedade, a dinâmica entre o Facebook e seus usuários é uma forma de abuso psicológico.
Combater o problema
Talvez seja hora de reunirmos algum tipo de Comissão Parlamentar de Inquérito [sob os auspícios da OMS] e fazer com que se exija, para o bem da saúde pública, que todas as grandes redes sociais sejam obrigadas a entregar detalhes de todas as “análises internas” que possuem sobre os efeitos de sua plataforma em sua base de usuários. Essa CPI idealmente deve ter autoridade para forçar o testemunho de todos profissionais de psicologia empregados por essas empresas.
Na verdade, talvez seja hora de determinar que todas essas empresas [acima de um determinado tamanho de base de usuários] devem, por lei, ter psicólogos clínicos na equipe e exigir que esse pessoal esteja envolvido na supervisão das decisões estratégicas em relação ao design e implementação dos recursos da plataforma.
Há uma expressão comumente usada em sistemas legais do Ocidente: “Ignorância da lei não é defesa”. No Brasil, o artigo 3 da Introdução ao Código Civil dispõe: “Ninguém se escusa de cumprir a lei alegando que não a conhece” Por uma linha de pensamento semelhante, ocultar atos de dano criminoso ou negligência parece, à primeira vista, tornar uma corporação cúmplice, se o ato original atingir o nível de comportamento criminoso.
Infelizmente, as coisas começam a ficar muito obscuras quando você explora o desafio de definir “dano mental” em termos de um ato criminoso. Pelo que li antes de postar este comentário, o problema fica quase intratável quando combinamos o desafio de estabelecer o grau de dano que um indivíduo pode sofrer, com o desafio de demonstrar que o dano veio como resultado direto das ações das corporações. Perguntas complexas surgem: o usuário/paciente era predisposto? Era vulnerável, emocional ou mentalmente?
Em outras palavras, parece ser bastante possível que uma empresa estabeleça um modelo de negócios nocivo ao bem-estar emocional e/ou mental de usuários e ainda assim opere impunemente, escondendo-se atrás da dificuldade de se provar que a empresa foi a causadora do dano.
É o que provavelmente pode estar acontecendo agora: estamos bloqueados nas nossas ações – cientes de que há um dano sendo causado pelas redes sociais, mas incapazes de fazer qualquer coisa a respeito.