O Fantasma na Máquina Inteligente

O mundo moderno usa o termo “robô” para se referir a dispositivos eletromecânicos que executam trabalhos anteriormente realizados por humanos; a origem do termo é a palavra checa robotnik.

Imagem: Pexels

Segundo o site etymonline.com robotnik significa, “pessoa mecânica”; também “pessoa cujo trabalho ou atividades são inteiramente mecânicos”, da tradução inglesa da peça “R.U.R.” de 1920 (“Robôs Universais da Rossum”) de Karel Capek (1890-1938); “trabalhador forçado”, de robota “trabalho forçado, serviço obrigatório, labuta”.

Há um certo consenso acadêmico de que a abolição do trabalho servil foi o que deu início à mecanização; que o principal efeito da emancipação do campesinato foi possibilitar a industrialização da lavoura: “Os grandes latifúndios, livres do servo ineficiente, poderiam ser conduzidos de forma mais econômica. Os arados a vapor da Hungria, uma característica marcante do final do século XIX na Europa continental, foram o resultado da emancipação camponesa”[0].

E essas inovações eram todas subprodutos do mesmo frenesi de criatividade. Em 1745 de Vaucanson inventou, entre outras coisas, o primeiro tear automatizado: um desenvolvimento que mais tarde desempenharia um papel crucial na mecanização das formas de trabalho que antes eram exclusivas de humanos.

Trabalho, trabalho e trabalho

E o que deveria nos preocupar é menos se as máquinas se tornarão sencientes, mas quais serão os efeitos de uma mecanização cada vez maior sobre os humanos.

Marx [é impossível falar de trabalho sem citar Marx, sorry] observa em O Capital (1867) que “A história não revela nenhuma tragédia mais horrível do que a extinção gradual dos tecelões artesanais ingleses”. No mesmo espírito, para termos um vislumbre do que os avanços na robótica humanoide prometem para nossas vidas, considere “Quinn“.

Quinn é um conceito [ainda primitivo] de um robô de atendimento ao cliente: em vez de pagar salários a vários humanos, um hoteleiro, por exemplo, pode instalar um Quinn nos balcões de toda sua cadeia, supervisionado por apenas um par de operadores remotos, capazes de intervir se uma consulta se tornar muito complexa para a máquina.

Mais abaixo na escala, as onipresentes máquinas de self-checkout são efetivamente dispositivos como o Quinn, só que mais insuspeitos, que transferem o fardo de fazer sentido para o cliente e a solução dos problemas operacionais para uma equipe de supervisores. E esse deslocamento da habilidade e da inteligência humana, por sua vez, reorganiza o trabalho humano para atender as prioridades da máquina.

Marx [sorry, again] descreveu a maneira como as linhas de montagem das fábricas obrigavam os trabalhadores humanos a adaptar seus movimentos, velocidade de trabalho e comportamento às demandas da máquina, em vez de empregar as ferramentas de trabalho de acordo com um padrão de movimento humano. O mesmo vale para todas as ondas de automação subsequentes, incluindo a atual.

O Turco Mecânico

Em 1770, a Imperatriz Habsburgo Maria Teresa e sua corte ficaram maravilhados com um verdadeiro prodígio da engenharia moderna: uma máquina humanoide capaz de derrotar um oponente humano no xadrez.

O dispositivo consistia em uma figura em tamanho natural, vestida no estilo “oriental” e sentada em frente a um tabuleiro de xadrez. Quando derrotou vários adversários na corte, foi uma sensação: amplamente conhecido como o “Turco Mecânico”, percorreu a França, a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, durante os quais disputou muitos jogos, inclusive contra Napoleão e Benjamin Franklin.

O Turco Mecânico – Imagem: Domínio Público

O único problema: o Turco Mecânico era falso. Embora a complexidade da farsa fosse em si um feito de engenharia notável, a inteligência do jogo de xadrez era fornecida por um humano habilmente escondido dentro da “máquina”.

No século 21, o Turco Mecânico dá nome a uma plataforma online [“Mechanical Turk” ] cujo produto é tornar o trabalho repetitivo e monótono de rotulação de dados no treinamento de sistemas inteligentes acessível para qualquer pequeno negócio, através da terceirização da atividade para trabalhadores remotos, que recebem tão pouco quanto US$ 0,97 por hora. Cortesia da Amazon.

Encontramos muitos desses “fantasmas humanos na Máquina Inteligente”: por exemplo, os trabalhadores de atendimento da Amazon, ‘otimizados’ pela vigilância algorítmica até o ponto de ruptura (e fazendo xixi em garrafas, como se tornou notório); ou os moderadores de conteúdo das redes sociais, se virando na gig-economy e lutando com o trauma provocado pelas coisas horríveis com as quais eles lidam em seu trabalho.

E existem até mesmo humanos, escondidos na IA tão desconfortavelmente quanto o operador oculto do Turco Mecânico, cujo papel é compensar o deficit na “inteligência” muda das máquinas. Veja, por exemplo, as pessoas contratadas para se passar por chatbots em empresas que querem parecer ultrassofisticadas.

Quero falar com um humano

A convergência entre humano e máquina, por sua vez, torna a humanidade real um luxo. Assim como a tecelagem mecânica tornou os tecidos baratos, os tecidos feitos à mão agora são extremamente caros – assim como qualquer coisa criada à mão com habilidade artesanal genuína. Da mesma forma, como o setor de hospitalidade se automatizou e despersonalizou durante a epidemia da Covid, as viagens “sem contato” tornaram o contato humano um extra premium – porque o que as pessoas realmente querem é conversar com um humano. Um canal da indústria hoteleira descreve a assistência humana hoje como um diferencial, “a marca registrada de uma viagem de luxo”.

Portanto, não importa se existem autômatos capazes de reproduzir fielmente o aspecto humano. Os que são lançados na economia de escala não se preocupam em buscar a verossimilhança, e são estes os que estão a transformar mais radicalmente nossas vidas.

Enquanto nos maravilhamos (ou estremecemos) com os simulacros quase perfeitos que chegam quase a convencer [ver uncanny valley] e toleramos entorpecidos os que não convencem, cada avanço na robótica reordena outra onda de trabalho humano às prioridades da máquina. E cada vez que o fazem, outra faceta do calor humano, inteligência e habilidade torna-se um extra premium, para os poucos sortudos.

Penso, logo existo

E o que deveria nos preocupar é menos se as máquinas se tornarão sencientes, mas quais serão os efeitos de uma mecanização cada vez maior sobre os humanos.

O avô do argumento de que a senciência humana é gerada a partir de processos fundamentalmente diferentes dos algorítmicos, ou mesmo de qualquer física atualmente compreendida, é nosso mais eminente matemático/físico e vencedor do Prêmio Nobel, Sir Roger Penrose. Noto aqui que os contra-argumentos penrosianos exigem um mergulho nos teoremas da incompletude de Gödel e na natureza do Problema da Parada na computação.

E nesta área não há lugar melhor para se pesquisar do que nos livros sedutoramente bem escritos de Roger Penrose, ‘The Emperor’s New Mind’ e ‘Shadows of the Mind’. Em resumo, Penrose implica uma distinção entre consciência e inteligência. Ele afirma que a consciência não é algoritmicamente explicável — embora ele não se refira propriamente à ‘inteligência’ neste contexto.

Pessoalmente falando, pensei por décadas que a senciência humana sempre seria inatingível pela inteligência de máquina gerada por algoritmos, mas não tenho mais certezas a esse respeito. Não acho que tenhamos uma maneira real de distinguir entre a inteligência humana e a inteligência da máquina e, por extensão, não temos como afirmar que a inteligência da máquina não exibirá algumas características da senciência. .

Chomsky argumentou que os humanos nascem com um senso inerente às estruturas da linguagem. E se isso for verdade, que implicações isso tem para a capacidade das máquinas de replicar habilidades linguísticas? E como os humanos diferem das máquinas nesse aspecto? O maior problema que temos é aquele com o qual Wittgenstein também lutou – o uso e as limitações da linguagem. Como saberemos se estamos todos discutindo o mesmo assunto?


[0] – The Habsburg Monarchy 1809–1918 – AJP Taylor

Não Tenha Pena da Wikipédia

A onipresente Wikipedia, nossa enciclopédia on-line sem fins lucrativos, está mais uma vez com a caneca na mão, a pedir aos seus leitores que doem qualquer quantia. Você provavelmente já viu um de seus banners no topo alguma página.

Imagem: Vox Leone

Sabemos que a independência financeira da WMF [Wikimedia Foundation – uma organização sem fins lucrativos com sede em São Francisco] claramente não está em risco. Então, o que está acontecendo? Uma resposta possível é que a WMF acha que ter dinheiro sobrando nunca é demais – claro, para a eventualidade de um dia chuvoso.

Equidade de Conhecimento

A WMF no entanto alega que tem altos planos globais para “tornar-se a infraestrutura essencial do ecossistema do conhecimento livre” até 2030. Ela diz que quer criar “equidade de conhecimento” – um mundo onde as pessoas em todos os lugares terão tanto acesso à informação em sua própria língua quanto os cidadãos do primeiro mundo – e que isso exigirá aumentos orçamentários contínuos. A certeza é que nesse tipo de empreitada ela sabe que pode contar com uma torneira de dinheiro sempre à disposição na Wikipedia – construída pelo trabalho de voluntários – que pode abrir quando quiser.

E, assim, as pessoas em países pobres como a Índia, ou em países atingidos pela pandemia, como Argentina e Uruguai, muitas das quais hoje temem pela estabilidade de suas vidas, pela vida de seus entes queridos e por seus meios de subsistência, são informadas, através de enormes banners vermelhos, de que a WMF precisa muito de uma doação deles hoje, para proteger a independência da Wikipedia

Banner (este exibido para os leitores da Índia) – Imagem: Wikimedia Commons

No banner acima lê-se:

Olá leitor da Índia. Parece que você usa muito a Wikipedia, e isso é ótimo! Este é o segundo apelo que nós exibimos para você. É embaraçoso, mas neste domingo nós precisamos de sua ajuda. Nós não temos pessoal de vendas. Dependemos de doações de leitores excepcionais, mas menos de 2% doa. Se você doar apenas 150 rúpias, ou qualquer coisa que puder neste domingo, a Wikipedia pode continuar a prosperar. Obrigado.

Esses banners se tornaram muito lucrativos para a Wikimedia Foundation. Todos os anos, a ONG adiciona dezenas de milhões de dólares ao seu “baú de guerra”. Após uma década de angariação de fundos em escala profissional, a fundação já havia acumulado US$ 400 milhões até março de 2022. A Wikimedia criou ainda um outro fundo, administrado pela Tides Foundation, que agora tem em caixa bem mais de US$ 100 milhões. No início a Fundação queria atingir esse número em um prazo de dez anos, mas veio a descobrir que havia superado a meta em apenas cinco. Em 2021, foram arrecadados US$ 162 milhões em recursos, um aumento de 50% em relação ao ano anterior. No entanto, os custos de funcionamento da Wikipédia propriamente representam uma pequena fração do valor total arrecadado pela Fundação Wikimedia a cada ano.


Eu já doei à Wikipedia movido em parte pelo coração mole mas também por puro idealismo, até começar a questionar mais profundamente. Será que a flagrante patrulha mental da Wikipedia contra acadêmicos e políticos dissidentes — “que pensam errado”, bem como os tantos episódios de falsificação deliberada da história, merecem algum apoio? Eu vejo claramente como a Wikipedia pode ser um alvo fácil para extremistas abrigados como “editores”.

É uma pena que tantas contribuições feitas por especialistas genuínos sejam perdidas pela recusa da Wikipedia em disciplinar seus editores rebeldes [ou talvez isso seja proposital e não uma falha do sistema]. Dito isso, eu entendo a necessidade de filtrar algumas coisas – mesmo a academia, cientistas e historiadores agora confessam que estão adaptando sua produção para não ferir susceptibilidades.

O que eu acho

Minha opinião pessoal é que as pessoas que valorizam a liberdade de expressão e a imparcialidade têm que manter um olhar crítico sobre a Wikipédia. Jimmy Wales no início pareceu ter ideais nobres para o site. Ele evitou a comercialização do site e assim abriu mão de uma receita potencial de dezenas de bilhões de dólares. A reserva de US$ 400 milhões é pouco em comparação com o que a Wikipedia poderia valer no mercado aberto. Mas Wales permitiu que o site fosse comprometido em sua imparcialidade; não por dinheiro, mas por ideologia política.

Wales fica facilmente irritado com com as críticas ao patente viés esquerdista da Wikipedia. Mas quando o site permite que veículos reconhecidamente partidários, como o New York Times, MSNBC, CNN, NPR, sejam usados como fontes autorizadas para confirmar fatos, mas não a Fox News ou o New York Post, o viés é óbvio [noto aqui que não faço juízo de valor nem tenho preferência por nenhum dos meios citados]. Veículos como Wikipedia e BBC, que estão livres de pressões comerciais, estão em uma posição única, e poderiam ser uma verdadeira força para o bem se moderassem as posições extremistas tanto da esquerda quanto da direita, fornecendo uma apresentação equilibrada dos fatos.

Convocar os usuários para “defender a independência da Wikipédia” está muito longe da voz monolítica e onisciente da razão que os leitores de longa data da Wiki esperam ouvir. Ter um cafofo para um dia de chuva é uma coisa. O desnecessário desvio de finalidade é outra.

Se a “equidade do conhecimento” é realmente o que eles almejam, a monetização convencional da plataforma provavelmente não é a maneira de fazê-lo. Nada é mais cruel do que um paywall onde, antes, havia uma riqueza inesgotável de informação, disponível para acessar livremente.

A Síndrome de Leonardo

Na blogosfera esta semana encontro um interessante post de onde tirei o título deste artigo. O tema de fundo é a procrastinação, algo com que a grande maioria das pessoas pode se identificar.

Vitruvian Man - arte
Imagem: Pexels

O post ao qual me refiro faz comentário sobre o livro de Peter Burke, The polymath: a cultural history from Leonardo da Vinci to Susan Sontag. Em uma passagem da obra o autor sustenta a tese, já defendida por outros, de que as aventuras criativas de Leonardo Da Vinci foram na verdade fracassos.

Exemplos de seus fracassos incluiriam não ter sucesso na quadratura do círculo [o que é geometricamente impossível], e em vários projetos de engenharia que não funcionaram – como uma besta gigante e uma máquina voadora; ter mal-entendido vários aspectos do coração; ter feito desenhos com tintas experimentais que resultaram em lenta degradação de algumas de suas pinturas.

Mesmo sua primeira encomenda registrada como pintor independente – um retábulo para a Capela de São Bernardo em 1478 – ele não conseguiu concluir, apesar de receber um adiantamento em dinheiro de 25 florins para isso. Muitos de seus contemporâneos registraram que ele não cumpria os prazos ou nem mesmo terminava projetos — como nunca ter terminou uma estátua equestre encomendada por Francesco Sforza.

O ensaio continua a explicar como o pensamento e o trabalho de Leonardo estavam fora das disciplinas da época (e sua abordagem ainda está fora de muitas que são ensinadas hoje), embora isso fosse uma desvantagem para sua carreira na época. Leonardo não era o “profissional sério”. Ele pegava algumas ideias e brincava com elas.

Um sentimento familiar

A esta altura começo a suspeitar que a Síndrome de Leonardo é a responsável pelas minhas longas noites. Com a Internet sendo tão vasta, há inúmeras coisas para experimentar e hackear [no sentido de ‘desmontar para conhecer o funcionamento’], e tenho inúmeros projetos inacabados guardados em meus discos rígidos [na verdade uso SSD’s]. Não sou um acumulador no sentido típico de guardar jornais velhos para a posteridade – e de fato sou um minimalista. Mas quando se trata da minha vida digital, é difícil resistir à facilidade de poder guardar montanhas de ‘jornais’ em forma de bits.

Leonardo ficaria paralisado pela web moderna. De certa forma sou como um renascentista, reunindo em meus escaninhos pequenos trechos de código que um dia podem ser úteis. Meus “favoritos” estão transbordando de URLs interessantes que pretendo revisitar algum dia. Eu sou um acumulador digital que procrastina muito em certos períodos. Não sei se preciso tomar providências para mudar, ou se isso é uma resposta natural à vastidão da web e a única maneira sensata de abordá-la.

Terminar o serviço é uma verdadeira dor

Em algum momento do projeto, chegamos à parte em que as coisas divertidas já foram feitas. Já aprendemos praticamente tudo o que foi possível com o exercício, e o trabalho está “90%” acabado.

Esses últimos 10%, no entanto, são uma ladeira íngreme, e muitas, muitas pessoas simplesmente acabam por abandonar o projeto nessa fase. Em muitos casos não há problema, se o objetivo principal era aprender e realmente não há “tração de mercado” suficiente para justificar a conclusão do projeto.

Se houver um requisito formal para concluí-lo (como, digamos, um contrato, com sua assinatura), é claro que os 10% precisam ser concluídos, não importa quão chato isso seja.

Há até uma piada no meio: “90% do projeto é concluído em 10% do tempo. 10% do projeto é concluído em 90% do tempo.” Já notou como, quando um novo prédio está sendo construído na vizinhança ele parece ficar “completo” em um tempo surpreendentemente curto? Contudo, quase sempre esse momento está apenas na metade do tempo da construção, e 100% do tempo tomado pelo projeto até aqui deverá se repetir antes que as portas se abram.

Isso porque fazer o exterior e a estrutura é simples e pode ser feito por praticamente qualquer pessoa. Alvenaria, janelas, portas, telhados, etc., são habilidades importantes, mas não extremamente especializadas.

O interior, porém, requer muita habilidade. Você não pode simplesmente trazer um martelador meia-colher. Você precisa de carpinteiros e marceneiros experientes e pintores bem remunerados. Essas pessoas são mais difíceis de agendar e não costumam apressar o trabalho. O resultado do trabalho deles é o que as pessoas verão de perto, todos os dias, então precisa de muito polimento e tem que ser robusto.

O mesmo com qualquer produto

No momento(*) estou escrevendo uma interface para padronizar a entrada de ‘prompts’ e parâmetros em plataformas como ‘Stable Diffusion’. Provavelmente o trabalho já estava 90% completo na semana passada, mas acontece que estabeleci um roteiro de teste bastante robusto para ele, e não consigo parar de testar. Estou encontrando bugs em minha implementação (sempre encontro), e estou corrigindo-os à medida que avanço. Também, como sói acontecer, estou sempre a encontrar “pequenas coisas” que esqueci de implementar.

Assim que eu tiver tudo funcionando para minha satisfação – e se achar que é de interesse geral, detalharei neste espaço.

(*)Muitas coisas chatas, mas isso significa que não preciso me preocupar com comunicação e marketing, muito críticos (e arriscados), que deixo aos parceiros mais habilitados.

De volta a Leonardo

Eu entendo o ponto do autor do citado blog, bem como o do formulador original da crítica, Peter Burke, talvez porque, como eles, eu também não acredite no mito do Superdotado Sobrenatural. A inteligência no fundo é um artefato cultural e precisa ser associada a outros atributos para levar ao sucesso. Ninguém, mesmo os gênios, tem uma visão privilegiada do Todo. Toda ciência e técnica é fruto de trabalho árduo.

Mesmo assim, os argumentos dos detratores são bastante injustos. Em favor de Leonardo, eu devo dizer ele tirava ideias de qualquer lugar – mas não apenas ideias que estavam no “cânone” de uma disciplina, e isso por si só é um portento admirável. Sobre fazer experimentos com tintas também não considero uma falha de caráter, pelo contrário. É, na verdade, um experimento que eu chamaria de audacioso – e de longo prazo. Sobre entender mal vários aspectos do coração, ele descobriu/teorizou como a válvula aórtica e seus folhetos funcionavam de uma forma que se mostrou correta – embora ele estivesse errado sobre a circulação sanguínea em geral.

Mona Lisa – obra inacabada

Não sei. Ele trabalhou nela por quatro anos, levando-a para todos os lugares onde ia para não ter que parar, e se ela estiver realmente inacabada pode ser simplesmente porque a mão direita do mestre estava começando a paralisar. Há mais a ser dito sobre o perfeccionismo na Mona Lisa do que a síndrome de Leonardo.

Leonardo definitivamente começou muito mais do que ele podia terminar (decepcionando muitos clientes, por certo), e tinha um certo auto engrandecimento em relação ao que ele dizia que podia fazer, mas os registros dos fatos não são muito precisos.

No fim de tudo, ele é lembrado porque, na verdade, tinha um conjunto muito grande de ideias detalhadas, desenhos, planos e realizações. A maioria de nós adoraria ter criado uma obra de arte tão inacabada quanto a Mona Lisa.


Leitura adicional recomendada

Burke, P. (2021) The polymath: a cultural history from Leonardo da Vinci to Susan Sontag. First published in paperback. New Haven London: Yale University Press.

Elon Musk versus ASG e suas contradições

Meses atrás o S&P 500 chutou a fabricante de veículos elétricos Tesla para fora de seu índice ASG como parte de uma atualização anual da lista. Enquanto isso, Apple, Microsoft, Amazon e até mesmo a multinacional de petróleo Exxon Mobil permanecem.

Imagem: Pexels

Como reportado pela CNBC em maio passado, o índice S&P 500 ESG usa dados ambientais, sociais e de governança para classificar e efetivamente recomendar empresas aos investidores. Seus critérios incluem centenas de pontos de dados, agregados por empresa, relacionados à forma como os negócios afetam o planeta e atendem às partes interessadas além dos acionistas – incluindo clientes, funcionários, fornecedores, parceiros e vizinhos. As alterações no índice entraram em vigor em 2 de maio, e uma das responsáveis pelas mudanças índice, Margareth Dorn, explicou em seu blog o problema com a empresa de Musk.

Ela disse que a “falta de uma estratégia de baixo carbono” e “códigos de conduta empresarial” da Tesla, juntamente com episódios de racismo e as más condições de trabalho relatadas na fábrica da Tesla em Fremont, Califórnia, afetaram a pontuação. “Embora a Tesla possa estar desempenhando seu papel ao tirar os carros movidos a combustível das ruas, ela ficou para trás de seus pares quando examinada por uma lente ASG mais ampla”, escreveu a porta-voz da S&P.

A Tesla notoriamente sempre teve uma avaliação baixa, não apenas no aspecto ambiental. Sua cultura empresarial sempre angariou antipatias. No Twitter, o CEO da Tesla, Elon Musk, disse que a S&P Global Ratings “perdeu sua integridade” e “foi aparelhada com falsos guerreiros da justiça social”.

Algo inesperado

Quer dizer então que a Tesla, empresa que mostrou como fazer carros elétricos que as pessoas realmente desejam — carros que podem ser carregados por energia solar (lembre-se que a Tesla também administra a Solar City), e uma das poucas empresas líderes em mostrar que os Estados Unidos ainda podem fabricar coisas não está apta, enquanto Exxon, um dos maiores poluidores do mundo, aparece como um missionário ambiental?

Não é bem assim

A Tesla certamente deu vida ao mercado de carros elétricos, e não há absolutamente nenhuma dúvida quanto a isso. Mas não basta apenas tê-los introduzido para as massas – a maioria dos carros elétricos não são Teslas.

O problema é que outros fabricantes têm a “vantagem do segundo empreendedor”, e a Tesla simplesmente não tem inovado o suficiente para se manter à frente e reter os benefícios de ser o primeiro. Por exemplo, os concorrentes agora alcançaram um ótimo nível de rendimento do conjunto motor/baterias enquanto a Tesla, no momento, não tem nenhum avanço que lhe permita ficar à frente deles.

Se, portanto, a Tesla não tem condições de de mostrar que é mais verde que a concorrência e liderar o mercado, é razoável, por mais crédito que mereça por impulsionar o mercado no passado, dizer que atualmente ela não possui credenciais particularmente fortes em termos de tecnologia verde.

Você não pode simplesmente fazer algo grande em um ponto fixo no tempo e esperar ser bem avaliado por isso para sempre se os outros pegarem o que você fez e fizerem ainda melhor. Obviamente não é assim que os índices funcionam.

Eu arriscaria dizer que o maior problema é que Musk se esticou demais. Por um tempo ele esteve realmente a conduzir a Tesla em várias questões-chave, como a autonomia das baterias. Agora ele parece estar desinteressado e tem se distraído com coisas como mídia social – com sua vacilante oferta ao Twitter. Aparentemente ele precisa voltar seu foco para empreendimentos como Tesla e SpaceX para que possa começar a levá-los de volta à frente da concorrência novamente e para recuperar o valor da Tesla. Caso contrário, acabará como “apenas mais um fabricante de veículos elétricos”.

A pergunta de um milhão de dólares

Por que, afinal, o mercado deveria se preocupar com coisas relacionadas à justiça social? A propósito, as grandes corporações já demonstraram que nunca são “responsáveis”. A aparência de ser responsável geralmente é a única coisa que importa para elas. Por acaso elas já deram aos grupos de Diversidade, Equidade e Inclusão alguma “Equity”? Deram elas algum assento no conselho de diretores aos países pobres da África?

O engraçado é que as preocupações ambientais e as preocupações com a justiça social geralmente estão em conflito direto. As preocupações de justiça ambiental e social muitas vezes estão em desacordo consigo mesmas. Pense na fazenda solar que invade espaços selvagens, ou na desativação de uma usina de carvão em uma comunidade muito pobre, mas cuja substituição custa empregos e aumenta os preços da energia (o que afeta desproporcionalmente os pobres). Claro que existem algumas proposições ASG que parecem sábias quando vistas ao telescópio, mas a maioria delas simplesmente não é. Como categoria o ASG traz profundas contradições em si.

Isso não quer dizer que os dados solicitados e coligidos pelo índice sejam inúteis ou não importantes. É fundamental conhecer a demografia dos funcionários, estatísticas ambientais, bem como ter um corpo de boas regras corporativas. Mas a ideia de estabelecer algum tipo de pontuação empresarial por altos valores morais em ASG é simplesmente estúpida, e nisso tenho que concordar com Musk.

Pessoalmente eu penso que quem realmente quer colocar seu dinheiro onde está sua moral, deve investir em empresas dentro de categorias que se alinhem com seus valores. Você fará mais bem apoiando uma empresa de gás natural que está a projetar usinas de hidrogênio (e deixando claro que é por isso que você fez esse investimento) do que investindo no Google porque ele comprou alguns créditos de carbono.

Mais um artefato da guerra cultural

Ao contrário dos solenes órgãos do “establishment” do jornalismo corporativo, a mídia independente – oi! – costuma ser muito direta sobre as deficiências do ASG. O podcast Breaking Points recentemente trouxe muitos detalhes sobre as recentes operações do governo americano junto ao Deutsche Bank e Goldman Sachs por suposta “greenwashing” [lavagem verde]. Além dos grandes bancos, os políticos também estão jogando rápido e solto com o novo rótulo. Em maio um comissário da União Européia chegou a chamar o gás natural de “fonte de energia verde”(!).

Sem surpresa, o rótulo ASG agora se tornou outra arma da guerra cultural travada para desacreditar adversários políticos. Usada pela direita como uma crítica ao movimento “woke”, e pela esquerda como forma de denunciar o “greenwashing” em empresas de setores que considera “malandros” (como petróleo e gás), a sigla se tornou precocemente datada.

Mas a verdadeira tragédia é que os padrões ASG continuarão a alimentar o crescente ceticismo em relação às mudanças climáticas e aqueles que divulgam de boa fé seus perigos potenciais. Infelizmente, para os céticos todas as iniciativas contra as mudanças climáticas parecem enganosas, não importa como sejam apresentadas, o que leva a crer que eles provavelmente jamais serão persuadidos.

ASG tem todas as características de uma farsa. Faríamos bem em descartar o rótulo junto com todos os males associados a ele.

*Em tempo: até os fundos ASG estão investindo em ações da empresas de Big Oil: Link

Post Scriptum

A Tesla vem sobrevivendo porque as grandes empresas de automóveis ainda não querem fazer elétricos; eles querem fazer picapes de alta margem de lucro e loucamente poluentes. A Tesla foi beneficiária de um esquema que lhe transferiu enormes somas de dinheiro da Ford & GM em troca da venda de carros elétricos. Basicamente, um subsídio indireto do governo, já que o custo de reduzir a poluição efetivamente foi repassado para os compradores de picapes – essencialmente um imposto para quem precisa de uma picape.

Mas, bem, a Ford tem uma picape elétrica a caminho. A GM não vai ficar muito atrás. Não há mais créditos de carbono para a Tesla. Não há mais almoços grátis.

Eu diria que em 10 anos poderemos ver uma fusão/assimilação da Tesla com/por um dos grandes fabricantes automotivos. Principalmente para acesso destes a patentes e engenheiros.

A Colisão do Crescimento*

Será a modernidade compatível com os limites do planeta?

Em termos simples, as pessoas querem (e são encorajadas a querer) bens e serviços além de suas necessidades básicas, e os mercados ficam felizes em atender.

Imagem: pexels.com

Uma receita comum para os países alcançarem altos padrões de vida tem sido a combinação de democracia e capitalismo. Na maioria das vezes, as pessoas votam em políticas que prometem melhorar suas circunstâncias, e as corporações tomam decisões visando maximizar os lucros/crescimento. Políticos e financistas comemoram números de crescimento forte (resmungando apenas quando um mercado superaquecido pode sinalizar inflação descontrolada), enquanto lamentam trimestres fracos e praticamente entram em pânico com a perspectiva de um período recessivo.

Hoje, o sistema econômico capitalista financeirizado que domina a atividade humana baseia-se no crescimento econômico constante e na expectativa de um futuro maior, testemunhado em taxas de juros, empréstimos, investimentos, dívidas públicas e privadas maciças e o papel descomunal do sistema bancário. O crescimento é considerado um bem tão indiscutível que o Objetivo nº 8 de Desenvolvimento Sustentável em 2015, da ONU, na verdade exige taxas de crescimento de 7% nos países menos desenvolvidos. Embora esse número seja um alvo a ser alcançado para a diminuição da distribuição desigual da riqueza entre as nações, como sempre a meta ainda é baseada na velha economia movida a combustíveis fósseis.

Imagem: Vox Leone via DreamStudio AI

A contradição embutida no sistema não cede. O crescimento, tanto material quanto econômico, simplesmente não pode continuar indefinidamente em um planeta finito. Economistas – baseados apenas em um curto período de evidência empírica – argumentam que a substituição e a dissociação [não encontro referências em português] são mecanismos que podem permitir um crescimento indefinido, se utilizados. Muitos exemplos do passado reforçam tais argumentos.

Contudo, a evidência que temos não sustenta a ideia de que o funcionamento básico da economia moderna pode acontecer sem um fluxo maciço de material e energia. Na prática, os ganhos de eficiência são amplamente zerados por qualquer crescimento adicional. Lembre-se de que todos os exemplos de progressos passados da era industrial ocorreram no contexto da exploração insustentável de recursos finitos. O futuro não precisa se parecer com o passado recente – na verdade, impactos irreversíveis acumulados significam que ele já não pode mais parecer.

Considere a história do uso de energia nos Estados Unidos nos últimos duzentos anos. A tendência segue de perto uma taxa de crescimento constante de aproximadamente 2,4% ao ano para todo este período, correspondendo convenientemente a um aumento de aproximadamente um fator de 10 a cada século. Aplicando essa taxa à taxa de produção de energia global de hoje – de 18 TW – sugere que o uso de energia da humanidade excederia a produção de todo o Sol em 1300 anos e todas as 100 bilhões de estrelas na Via Láctea em 2400 anos. Continuar com esse crescimento anual de produção de energia claramente não é possível por muito tempo em escalas de tempo relevantes para a civilização.

Pensando de outra forma, os processos de energia na Terra produzem calor que deve ser irradiado para o espaço – o único canal de resfriamento significativo. Não importa qual seja a tecnologia – mesmo permitindo recursos energéticos hipotéticos e não descobertos – a Lei de Stefan-Boltzmann na física prescreve a temperatura de equilíbrio da superfície do planeta em função da energia produzida.

Com um aumento anual contínuo de 2,4% na produção de energia, a superfície da Terra atinge temperaturas de ebulição em cerca de 400 anos e atinge a temperatura da superfície do Sol em 1000 anos. Esses números – que superam o efeito do aquecimento global impulsionado pelo CO2 – são claramente absurdos, acabando com qualquer noção de que o crescimento de energia experimentado nas últimas centenas de anos possa continuar em ritmo acelerado por outras centenas.

Imagem: Vox Leone via DreamStudio AI

Mas por que a cessação do crescimento do consumo de energia deveria significar o fim do crescimento econômico? Afinal, nem toda atividade econômica é intensiva em energia (a ideia de dissociação, como observado acima). Mas algumas atividades sempre consumirão muita energia: água fervente e outras tarefas térmicas; fertilização e colheita de alimentos; processos de fundição de alumínio e outros materiais; e transporte de pessoas e mercadorias.

Muitos deles são itens básicos não negociáveis da atividade humana e serão limitados em escala máxima pelos fatos elencados nos últimos três parágrafos. Por sua vez, a fração da economia “dissociada” – bens/serviços de valor intangível ou estético, por exemplo – deve permanecer modesta, para que os elementos essenciais de sobrevivência não sejam relegados a uma fração insignificante (portanto arbitrariamente barata) do cenário econômico

A cultura humana – os valores, crenças e atitudes das pessoas – está complexamente entrelaçada nessas transições impulsionadas pela energia.


(*) Esta é a minha tradução da Parte 4 – The Growth Collision – do espetacular artigo Modernity is incompatible with planetary limits: Developing a PLAN for the future (Novembro, 2021), que trago aqui invocando “fair use”, e que pode ser lido na íntegra [em inglês] neste link permanente:

https://doi.org/10.1016/j.erss.2021.102239


Segundo depreendo da leitura do artigo, mesmo com o uso de tecnologias limpas o planeta se aqueceria em resposta às atividades humanas, como decorrência natural da citada lei de Stefan-Boltzmann, e apenas ela. Para que haja equilíbrio o calor gerado pela energia produzida deve escapar para o espaço na totalidade. A simples presença de uma atmosfera já garante a retenção do calor que deveria ser irradiado, levando inevitavelmente a um aquecimento global. As leis da física não oferecem solução para o nosso tipo de progresso.

O que os autores propõem, aparentemente, não é nada menos do que um sistema econômico energeticamente vegetativo, sustentando uma população humana pelo menos uma ordem de grandeza (10x) menor do que a que hoje vaga pelo planeta (8 bilhões). As implicações desse argumento — a total renúncia à tecnologia de massa, e, consequentemente ao nosso estilo de vida (iluminismo, democracia, capitalismo) é devastadora e não pode ser esgotada em um simples post de blog.

Eu gostaria de ver um debate substantivo sobre este tema em nossa língua mãe. Esta é uma pequena contribuição. Seguirei a inquirir.