Esse Estranho Capitalismo Virtual

A indústria de Tecnologia, Informação e Comunicação (TIC) tem uma questão interessante, e os economistas profissionais aparentemente não gostam de falar sobre ela.

Imagem: Pexels

Em praticamente todos os setores da economia o preço de um bem sobe mais rápido do que sua utilidade, um fenômeno intrinsecamente “inflacionário”. Portanto, há pouco sentido em adiar uma compra – logo, compre um apartamento ou casa o mais cedo possível.

Agora considere os computadores, um item cujo desempenho (utilidade) historicamente dobrou a cada 18 meses, segundo a progressão conhecida como Lei de Moore. No entanto, o preço deles em moeda fiduciária permaneceu relativamente estável. Ou seja, R$ 1.500 sempre deram acesso a um moderno laptop para consumo ou negócios, ano após ano.

Enquanto isso, a maioria das outras coisas sofria com uma inflação da moeda fiduciária de cerca de 3% ao ano. Portanto, depois de uma década, o que custava $100 agora fora reajustado para ~ $134. Note que com a economia pagando, na melhor das hipóteses, cerca de 2% de rendimento, você só teria ~ $125 guardados na poupança nesse mesmo período.

Assim, quando você quisesse comprar um laptop de ponta, seus $ 1.500 no banco, depois de uma década, teriam chegado a $1.875 ($375 a mais). Contudo, o computador seria 100 vezes mais poderoso. Do ponto de vista econômico, isso representa uma deflação muito séria e muito prejudicial. Portanto, pelas normas da economia clássica, a industria de TIC não deveria existir – nem qualquer outra indústria de eletrônicos de consumo.

O capitalismo virtual

Esse problema estava se espalhando para o mercado automotivo, devido à eletrônica embarcada, o que estava se mostrando prejudicial de várias maneiras.

No entanto, e esse é o novo fenômeno, alguns fabricantes automotivos agora não mais “vendem” carros aos consumidores. Em em vez disso eles agora usam expressões como “buy back” ou “trade up“- uma espécie de leasing rebatizado. Em essência, fazem você pagar uma taxa de uso mensal indefinidamente. Eles apenas te dão outro carro, com cada vez mais componentes eletrônicos, a cada três anos – o que ainda é efetivamente deflacionário pelas regras dos economistas clássicos.

Alguns fabricantes de carros de ponta nem tentam esconder o fato de que os seus produtos vêm com todos os recursos possíveis já embutidos – só que desativados. Se você pagar um pouco a mais a cada mês, eles vão permitir que você os use, bastando apenas uma atualização remota do cṍdigo.

Você não é proprietário legítimo do carro [arrisco dizer que, nessas condições, dar certos comandos de voz em tons mais ríspidos poderia trazer apuros jurídicos].

Além disso, como reza o contrato [que você talvez não tenha lido], você precisa também dar a eles a sua alma, em forma de um dilúvio de informações pessoais.

Um sabor de mercantilismo

As velhas regras da economia estão se tornando menos relevantes à medida que somos forçados a uma economia rentista da qual não se pode escapar. Veja assim o futuro próximo: perca sua renda por algum motivo e eles, remotamente, desligam tudo o que você achava que possuía. Mesmo assim todas as coisas ao seu redor ainda vão continuar a espionar você minuto a minuto, dia a dia – porque para se desconectar é preciso usar uma das funcionalidades que eles desativaram remotamente. Nada como a proverbial “liberdade capitalista”.

De qualquer forma, em um futuro próximo certamente haverá alguma cláusula legal para fazer você pagar um montante adicional para ser excluído da vigilância.

Pelo que me disseram, as telecoms americanas chegaram muito perto desse modelo, ou de algo que serviria de trampolim para ele. O usuário pagaria pelo plano de conectividade – em oposição a um modelo grátis baseado em anúncios – mas mesmo assim as empresas o espionariam e venderiam os dados coletados.

Se você quisesse o plano “sem vigilância”, a ideia era que você teria que pagar mais, com todos os tipos de outros penduricalhos, etc., totalizando algo como $30/mês a mais – eles ainda iriam espionar e coletar dados, mas não “vendê-los” enquanto você continuasse a pagar o “resgate” [como em um sequestro].

Não ficou claro o que eles queriam dizer com “não vender” e não havia garantia de que eles não venderiam todos os seus dados privados em uma data posterior – aparentemente alguém decidiu que o mercado ainda não estava pronto para essa opção, “ainda”.

Post scriptum

O capitalismo tem perdido também outras dimensões. Acabamos de ver aqui como o capitalismo está rapidamente se dissociando da ideia de “propriedade”.

Mas nem é preciso uma análise atenta para ver que o conceito de concorrência está sendo pulverizado por monopólios cada vez mais poderosos. Noções mais abstratas e difusas, como virtude, pudor, modéstia e mérito, tão sagradas à clássica moral capitalista protestante, já foram extintas pela brutal economia da atenção e pelo imediatismo narcisista das redes sociais, em que é possível encontrar completos imbecis a fazer fortunas da noite para o dia, e a ditar o ethos da época [o que alguns chamam de zeitgeist].

Eticamente, o capitalismo está em frangalhos, desta vez muito mais do que esteve em qualquer período da história, e a marcha de sua insensatez parece apenas se acelerar. O capitalismo se parece cada vez mais com o seus antecessores primitivos, o feudalismo e o mercantilismo. A social-democracia de tempos atrás, praticamente extinta, me parece agora um regime muito mais sofisticado e justo – e em 1989 parecia, de fato, ter vencido a História.

Realmente, só se dá valor ao que se perde.

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