Sobre Cães e Homens

Amigo e protetor dos cães que sou, sempre quis postar algo sobre eles. Hoje, uso como pretexto – na falta de um melhor – o primeiro dia de minha estação favorita para apresentar minha tradução deste ensaio de Henry Childs Merwin, “On Dogs and Men”, publicado na edição de Janeiro de 1910 da revista “The Atlantic”. Um texto longo para as noites mais longas.

Yoko, minha pretinha.
Yoko, que me leva a passear todos os dias. Ao fundo, Ghanima. EBM/VL

EXISTEM homens e mulheres no mundo que, por sua própria vontade, vivem uma vida sem cães, sem saber o que estão a perder; é para eles que este ensaio, colocado com segurança na digna “The Atlantic”, para permanecer aqui enquanto durarem as bibliotecas e os livros, foi escrito principalmente. Que eles não ignorem isto com desprezo, mas antes parem para considerar o que pode ser dito sobre os cães, como seres com direito à sua simpatia e que têm, talvez, destino semelhante ao seu.

Quanto às poucas pessoas que não apenas não têm cães, mas que também os odeiam, deveriam provocar mais pena do que ressentimento. O homem que odeia um bom cachorro é anormal e não pode lutar contra isso. Certa vez conheci um homem assim, um agiota falecido há muito tempo, cuja vida foi em grande parte uma cruzada contra os cães, realizada através de jornais, panfletos e conversas. Ele costumava declarar que já havia sido mordido muitas vezes por esses animais e que, certa vez, um terrier pulou no bonde em que ele viajava e arrancou-lhe um pedaço da perna (um mero arranhão, com certeza), e então saltou em fuga – tudo sem provocação aparente, e tudo de repente. Provavelmente esta história, por mais estranha que possa parecer, fosse substancialmente verdadeira. As percepções do cão são maravilhosamente aguçadas.

Uma ocorrência recente pode servir como o inverso da história do agiota. Um collie perdido, coxo e quase morrendo de fome, foi acolhido, alimentado e cuidado por uma família de pessoas caridosas, que, no entanto, não gostavam nem entendiam os cães, e estavam ansiosas para se livrar deste, desde que um bom lar pudesse ser encontrado para ele. No decorrer de uma semana, veio visitá-los em sua charrete uma senhora que gosta muito de cães e que possui aquela combinação de espírito dominador com aquela profunda afeição que age como bruxaria sobre os animais inferiores. O collie foi trazido e a história de seu resgate foi contada detalhadamente. Enquanto isso, a velha senhora e o cachorro olhavam-se fixamente nos olhos. “Você quer vir comigo, cachorrinho?” ela disse sem convicção, sem realmente querer levá-lo. O cachorro então pulou e sentou-se ao lado dela, e não pôde ser desalojado por quaisquer súplicas ou comandos – e todas as partes relutavam em usar a força. Ela o levou para casa, mas o trouxe de volta no dia seguinte, com a intenção de deixá-lo para trás. Mais uma vez, porém, o cão recusou-se a se separar de sua nova e verdadeira amiga. Ele abanou o rabo superficialmente a seus benfeitores – ele não queria ser ingrato e, como todos os cães, ele não procurava interesseiramente carne e ossos e um lugar confortável perto do fogo, mas sim carinho e carícias. Não vive o cão que se recusaria a abrir mão do jantar pela companhia do dono.

A missão do cão – digo-o com toda a reverência – é a mesma do Cristianismo, nomeadamente, ensinar à humanidade que o universo é governado pelo amor. A companhia de um cachorro tende a amolecer os corações duros dos homens. Existem dois grandes mistérios sobre os animais inferiores: um, o sofrimento que eles têm de suportar nas mãos do homem; o outro, a riqueza de afeto que possuem e que, em sua maior parte, não conseguem gastar. Todos os animais têm essa capacidade de amar outras criaturas, incluindo o homem. Os corvos, por exemplo, demonstram isso de forma notável. “Tanto afeto latente há em cada bando de corvos que sobrevoam o céu quanto caberia a uma família humana amorosa.” Um corvo e um cachorro, se mantidos juntos, se tornarão quase tão afeiçoados um pelo outro quanto por seu dono. Certamente este fato, esta capacidade dos animais inferiores de amarem, não apenas o homem, mas uns aos outros, é o mais significativo, o mais merecedor de ser ponderado, o mais importante no que diz respeito ao seu lugar no universo, de todos os fatos que pode ser aprendido sobre eles. Comparado com isso, quão trivial é qualquer coisa que o zoólogo, o biólogo ou o fisiologista possa nos dizer sobre a natureza dos animais inferiores!

A visão mais linda do mundo, ouvi dizer uma vez (de mim mesmo, para ser honesto), é a expressão nos olhos de um cachorrinho inteligente e de temperamento dócil – um cachorrinho com idade suficiente para se interessar pelas coisas sobre ele, e ainda assim tão jovem que imagina que todas as pessoas serão boas para ele; tão jovem que não teme que algum homem ou menino lhe dê um chute, ou que algum cachorro lhe tire o osso. Nos olhos de tal cachorrinho há um olhar de inocência confiante, uma consciência de sua própria fraqueza e inexperiência, um desejo de amar e ser amado, que são irresistíveis. Nos cães mais velhos é mais provável notar um olhar ávido, ansioso e indagador, como se estivessem se esforçando para compreender coisas que o Todo-Poderoso colocou além de seu alcance mental; e a abordagem mais próxima de uma expressão realmente humana é vista em cães que sofrem de doenças. Heine, que, como o leitor bem sabe, serviu durante um longo aprendizado na dor, diz em algum lugar que a dor refina até os animais inferiores; e todos os que estão familiarizados com cães, tanto na saúde como na doença, verão a verdade desta afirmação. Vi no rosto de um cão inteligente, sofrendo gravemente de cinomose, uma aparência tão humana que chega a ser quase aterrorizante; como se eu tivesse acidentalmente vislumbrado alguma característica profunda no animal que a natureza pretendia esconder do olhar mortal.

O cão, de fato, apela continuamente à simpatia de seus amigos humanos e, assim, os protege de se tornarem duros ou mesquinhos. Existem certas famílias, talvez especialmente na Nova Inglaterra, e acima de tudo, sem dúvida, em Boston, que precisam ser regeneradas, e podem ser regeneradas pela companhia de um cachorro, desde que o façam com o espírito adequado. Um ilustre pregador e autor, ele próprio um unitarista, comentou recentemente num discurso aos unitaristas que eles eram geralmente as pessoas mais satisfeitas consigo mesmas que ele já havia conhecido. Foi uma observação casual, e talvez nem ele nem aqueles que a ouviram tenham apreciado todo o seu significado. No entanto, o pregador provavelmente não estava pensando tanto nos unitaristas, mas sim em um certo tipo de pessoa frequentemente encontrada nesta vizinhança, e não necessariamente professando qualquer forma particular de religião. Todos nós conhecemos o tipo. Quando um homem tem dinheiro no banco, é respeitável e respeitado, formou-se em Harvard, tem esposa e filhos decorosos, nunca se deixou levar por nenhuma paixão ou entusiasmo, conhece as pessoas certas e se conforma estritamente aos costumes da boa sociedade; e quando esse tipo de coisa vem acontecendo há, talvez, duas ou três gerações, então é provável que se lhe insinue no sangue uma frieza que gelaria o coração de uma estátua de bronze. Tais pessoas são realmente elementos degenerados de sua espécie peculiar e precisam ser salvas, talvez por meio de medidas desesperadas. Deixe-os fugir com a cozinheira; deixe-os entrar para uma religião do tipo metodista violento ou de tipo ritualista intenso (os dois têm muito em comum); ou se não puderem fazer isso, deixe-os arranjar um cachorro, dar-lhe o cuidado da casa, amá-lo e mimá-lo, e assim, pela bênção da Providência, eles poderão alcançar a salvação.

Os reformadores e filantropos deveriam sempre ter cães, para que o elemento de espontaneidade não desapareça completamente deles. A tendência deles é considerar a raça humana como um problema, e pessoas específicas como “casos” a serem tratados, não de acordo com os impulsos de cada um, mas de acordo com certas regras aprovadas pela boa autoridade, e supostamente consistentes com princípios econômicos sólidos. Princípios.

Para meu velho amigo ‘ ——‘, que antes gostava de mim pelo que sou, sem perguntar por quê, há muito deixei de ser um indivíduo e agora sou simplesmente um item da humanidade a quem ele deve obrigações – como minhas necessidades ou vícios particulares parecem indicar. Mas se ele tivesse um cachorro, não iria tratá-lo dessa maneira impessoal, nem se preocupar com a moral do cachorro; ele simplesmente sentiria prazer em sua companhia e o amaria pelo que ele fosse, sem considerar o que ele poderia ter sido. [ver notas]

Conheço e honro um filantropo que, na meia-idade ou próximo disso, tornou-se pela primeira vez dono de um cachorro; e daí em diante revelou-se nele uma veia genuína de sentimento e afeição que os muitos anos de prática do bem e de uma vida virtuosa não conseguiram erradicar. Muitas vezes eu tinha ouvido falar de seus feitos cívicos e de suas bem dirigidas instituições de caridade, mas meu coração nunca se entusiasmou com ele, até que soube que, com óculos no nariz e pente na mão, ele havia passado três laboriosas horas examinando dolorosamente o rosto de um spaniel, e eliminando aqueles hóspedes parasitas que às vezes infestam a pelagem do cão mais limpo e aristocrático. Não tenho vergonha de dizer que tenho agora uma confiança em sua sabedoria que não tinha antes, sabendo que sua cabeça nunca poderá tiranizar seu coração. Seu nome deveria ser registrado aqui, não fosse sua modéstia ofendida pelo ato. (Três letras seriam suficientes para imprimi-lo.)

Ao falar do cão como uma espécie de missionário na casa, quero dizer – nem é preciso dizer – algo mais do que a mera propriedade do animal. Não será suficiente pagar uma grande soma por um cão de raça elegante, equipá-lo com uma coleira cara e depois relegá-lo ao estábulo ou à cozinha. Ele deve fazer parte da família, viver em igualdade de condições com os demais e ser seu companheiro constante. A vida do cão é, na melhor das hipóteses, curta e cada momento será necessário para o seu desenvolvimento. É maravilhoso como ano após ano o animal doméstico cresce em inteligência, quantas palavras ele aprende o significado, quão rápido ele se torna na interpretação do olhar, do tom de voz, do humor da pessoa que ele ama. Ele envelhece aos dez ou onze anos e raramente vive além dos treze ou quatorze anos. Se ele vivesse até os cinquenta anos, saberia tanto que ficaríamos inquietos, talvez aterrorizados, em sua presença.

Uma certa disciplina é necessária para um cão. Se for deixado por conta própria, ele poderá se tornar um tanto dissipado, passar as noites fora, espalhar entre muitos o afeto que deveria ser reservado a poucos. Mas, por outro lado, um cão pode facilmente receber disciplina demais; ele se torna como o filho de um pai despótico. Um cão perfeitamente treinado, um que nunca “pula” em você, nunca coloca uma pata suplicante em seu braço, nunca sobe em uma cadeira, nem entra na sala de estar, – tal cão é uma visão triste para quem realmente conhece e ama os cães. É contra sua natureza ser tão reprimido. Donas de casa excessivamente cuidadosas, e pessoas que estão sobrecarregadas com ambientes dispendiosos, falam em danificar tapetes e outros móveis se o cão tiver direito de entrar em todos os lugares da casa. Mas para que servem os móveis? É para exibição, é garantia da riqueza dos proprietários ou é para uso? Bem-aventurados aqueles cuja mobília é tão barata ou tão pobre que as crianças e os cães não são excluídos dos seus recintos sagrados. Talvez a casa mais feliz em que tive a honra de ser admitido tenha sido aquela em que às vezes era um pouco difícil encontrar uma cadeira confortável: os cães sempre as ocupavam. Infelizmente, onde estão essas cadeiras confortáveis agora? Onde estão os cães que costumavam sentar-se nelas, piscar e bocejar, e dar as patas em constrangimento humorístico?

“’A sala de estar foi feita para cães, e não cães para a sala de estar’, seria a tese de Lady Barnes, se ela a formulasse.” Foi essa mesma Lady Barnes (Rhoda Broughton) quem disse uma vez: “’Não acredito em Eliza, a empregada que deixo responsável aqui. Da última vez que vim de Londres, os cães estavam tão anormalmente comportados que tive certeza de que ela os intimidava. Falei muito seriamente com ela, e desta vez, fico feliz em dizer, eles estão tão desobedientes como sempre, e fizeram ainda mais maldades do que quando estou em casa.’ E ela ri com um delicado deleite com sua própria loucura. ”

A propósito, entre todos os escritores de ficção, haverá algum cujos cães se igualem aos de Rhoda Broughton? Mesmo o querido autor de Rab e seus amigos [Dr. John Brown], mesmo o próprio Sir Walter, com seu imortal Dandie Dinmonts, não nos deram, parece-me, imagens de cães tão realistas e caseiras como as que aparecem nos romances dela. Eles parecem estar lá, não com um propósito definido, mas como se os cães fossem uma parte tão essencial de sua própria existência que se infiltrassem em seus livros quase sem que ela percebesse. Nenhum espaço em seus romances está completo sem um ou dois cachorros; e cada observação que ela faz sobre eles tem a qualidade de uma carícia. Mesmo em um momento trágico, a heroína não pode deixar de observar que “Mink está deitado de lado, pequeno e peludo, com um protetor solar, com as patinhas cruzadas como as de um santo moribundo”. Mr. Brown, aquele querido e fiel vira-lata, está para sempre associado à infeliz Joan; e o “aufff” de Brenda ressoará pelos corredores do tempo enquanto os romances forem lidos.

Talvez o teste final para o amor de alguém pelos cães seja a disposição de permitir que eles transformem a cama em um acampamento. Não há outro lugar no mundo que combine tão bem com o cão. Na cama ele está a salvo de ser pisado; ele está fora do caminho das correntes de ar; ele tem uma posição de comando para monitorar o que acontece no mundo; e, acima de tudo, a superfície é macia e cede aos seus membros estendidos. Nenhum mero homem pode estar tão confortável quanto um cachorro parece estar em uma cama.

Algumas pessoas se opõem a ter um cachorro na cama à noite; e deve-se admitir que ás vezes ele repousa um pouco pesadamente sobre os membros; mas por que ser tão vil a ponto de preferir o conforto à companhia do cão! Acordar na noite escura e colocar a mão naquele corpo quente e macio, sentir as batidas daquele coração fiel – não é isso melhor do que a preguiça imperturbável? A melhor noite de descanso que já tive foi uma vez, quando um filhote cocker spaniel, que acabara de se recuperar de uma dor de estômago (tomara uma ou duas coca-colas), e estava um pouco assustado com a desconfortável experiência, enrolou-se em meu ombro como um tippet de pele, empurrou suavemente seu focinho frio e macio em meu pescoço, e lá dormi doce e profundamente até de manhã.

A companhia de seu dono é o remédio do cão para todos os males, e apenas um caso extremo justificará mandá-lo embora ou hospedá-lo. Colocar um cachorro num hospital, a menos que haja alguma necessidade cirúrgica ou outra necessidade para fazê-lo, é um ato de bondade duvidosa. Muitos e muitos cães já morreram de saudades de casa. Se ele estiver doente, mantenha-o aquecido e quieto, dê remédios simples como você daria a uma criança, despeje chá de carne ou leite maltado em sua garganta, ou mesmo um pouco de uísque, se ele estiver fraco por falta de comida; e deixe-o viver ou morrer, como fizeram nossos pais e os cães de nossos pais – em casa.

O pior mal que pode acontecer a um cachorro, não é preciso dizer, é se perder. As próprias palavras “cachorro perdido” evocam imagens de miséria canina que nunca poderão ser esquecidas por aqueles que as testemunharam. Vi um cachorro perdido, coxo, emaciado, ferido, com pés doloridos, faminto e sedento, mas sofrendo tão intensamente de medo, solidão e desespero – pela mera sensação de estar perdido – que ficou absolutamente inconsciente de sua condição corporal. A agonia mental foi tão maior que engoliu a dor física. Um pequeno Boston terrier, perdido em uma cidade grande por dois ou três dias, ficou tão debilitado em seu sistema nervoso que nenhum cuidado ou carinho poderia restaurá-lo à equanimidade, e foi necessário matá-lo. Oh, leitor, não ignore o cachorro perdido! Socorra-o se puder; preserve-o do que é pior que a morte. É fácil reconhecê-lo pelo olhar de terror nervoso, pela cauda caída, pelos movimentos incertos.

Há uma experiência pessoal de remorso, da qual eu ficaria feliz em desabafar com o leitor. Certa vez, tornou-se meu dever sacrificar um cachorro que sofria de alguma doença incurável. Em vez de fazer isso eu mesmo, como deveria ter feito, levei-o a um lugar onde os cães perdidos são recolhidos e onde aqueles para quem não se encontra um lar são misericordiosamente destruídos. Lá, em vez de conduzi-lo à câmara mortuária, como, mais uma vez, deveria ter feito, entreguei-o ao carrasco. O cachorro era anormalmente nervoso e tímido; e quando foi arrastado contra sua vontade, ele se virou, tanto quanto pôde, e lançou para mim um olhar de horror, de medo, de apelo agonizante – um olhar que me assombrou durante anos.

Se ele tinha alguma ideia do que lhe estava reservado, não sei, mas é altamente provável que sim. Cães e outros animais são maravilhosos leitores de mentes. Conheci dois casos em que alguma discussão sobre a necessidade de matar um cão velho, realizada na sua presença, foi rapidamente seguida pelo desaparecimento repentino e inexplicável do animal; e nenhuma notícia dele jamais pôde ser obtida, embora os maiores esforços tenham sido feitos para obtê-las. Os cavalos são inferiores apenas aos cães nesta capacidade. Freqüentemente, especialmente no caso de cavalos ferozes ou meio quebrados, uma intenção passará da mente do cavalo para a mente do cavaleiro ou cocheiro, e vice-versa, sem que a menor indicação seja dada pelo cavalo ou pelo homem. Homens que montam cavalos de corrida me disseram que uma súbita convicção em suas próprias mentes, no decorrer de uma corrida, de que não conseguiriam vencer, passou imediatamente para o cavalo e fez com que ele diminuísse a velocidade, embora eles não tivessem cessado de instá-lo. É notório que pilotos tímidos e pessimistas perdem frequentemente corridas que deveriam ganhar.

Quanto às histórias notáveis sobre este ou aquele animal, talvez se possa dizer que são provavelmente verdadeiras quando ilustram as capacidades perceptivas do animal, e provavelmente falsas quando dependem do seu poder para se originarem. Recentemente apareceu uma reportagem de uma corrida entre mergulhões selvagens: como os mergulhões se reuniram e organizaram as preliminares (não foi dito se eles fizeram registros sobre o evento ou adotaram o sistema de pool de apostas), como a corrida foi realizada, ou melhor, voada, em meio a intensa excitação lunática, e como o vencedor foi saudado com gritos de aplausos!

Algum poder de invenção os animais, e especialmente dos cães, certamente têm. Existe o truque familiar que os cães fazem quando um, para tirar um osso do outro, corre um pouco, dá o latido que significa a presença de um intruso, depois volta e foge silenciosamente com o osso que o outro cão, na curiosidade de ver quem vem, caiu impulsivamente. Este é um exemplo não apenas de raciocínio, mas de pensamento criativo.

Em geral, porém, quando os cães nos surpreendem, como acontece frequentemente, é pela delicadeza e agudeza dos seus poderes perceptivos. Quão infalivelmente distinguem entre diferentes classes de pessoas, como, por exemplo, entre os membros da família e os empregados; e novamente, entre os criados e os amigos da casa! Inquestionavelmente, o cão tem três conjuntos de maneiras para essas três classes de pessoas. Ele tomará na cozinha liberdades que jamais sonharia tomar na sala de jantar. Sabemos que nossa cozinheira fugiu da cozinha aterrorizada porque Fígaro, um magistral cocker spaniel, ameaçou mordê-la se ela não lhe desse imediatamente um pedaço de carne. Figaro concluiu que a cozinheira era em parte sua cozinheira e que ele tinha o direito de intimidá-la, se pudesse.

Quanto aos diferentes membros da família, o cão irá “avaliá-los” com um instinto infalível. É impossível esconder dele qualquer fraqueza de caráter; e se você for forte, ele também saberá disso.

Enquanto escrevo estas linhas, a visão do “Sr. Guppy” surge diante de mim. Guppy era um Boston terrier muito pequeno, com cabeça branca, mas de cor tigrada. Ele tinha uma linda “caneca”, muito parecida com a de um bulldog, com nariz curto, mandíbulas largas e muita pele solta pendurada em seu pescoço robusto e pequeno. Deve-se admitir que ele era um tanto auto-indulgente, estando continuamente à espera de uma oportunidade de se deitar perto do fogo – uma situação considerada por seus amigos como prejudicial para ele. O Sr. Guppy me entendia muito bem. Ele sabia que eu era uma criatura pobre, fraca, descontraída e distraída, com quem ele podia tomar liberdades; e, portanto, quando estávamos sozinhos, o malandro dormia com a cabeça na lareira, enquanto eu estava absorto em meu livro. Mas ouça! há um barulho na escada, de alguém que o Sr. Guppy amava e temia mais do que qualquer cachorro jamais me amou ou temeu; e imediatamente o pequeno impostor se levantava e rastejava suavemente de volta ao seu lugar, num tapete no canto; e ali seria encontrado deitado e piscando, com uma expressão de perfeita inocência, quando a disciplinadora entrava na sala.

Os cães têm a mesma sensibilidade que associamos a homens e mulheres bem-educados. Sua polidez é notável. Ofereça água a um cachorro quando ele não estiver com sede, e ele quase sempre dará uma ou duas voltas, só por cortesia, e para mostrar sua gratidão, conheço um grupo de cães que nunca se esquecem de vir avisar a dona quando terminaram de jantar, para agradá-la. E se o jantar ainda não foi servido, notificá-la-ão imediatamente da omissão. Se acontecer de você pisar no rabo ou na pata de um cachorro, com que avidez – depois de um irreprimível ganido de dor – ele lhe dirá, por meio de suas carícias, que sabe que você não teve a intenção de machucá-lo e que o perdoa!

Além disso, nas relações uns com os outros, os cães têm um aguçado senso de etiqueta. Um conhecido viajante faz esta observação inesperada sobre uma tribo de homens negros nus, que vivem numa das ilhas dos Mares do Sul: “Nas suas relações diárias há muitas coisas rígidas, formais e precisas.” Quase a mesma observação pode ser feita sobre os cães. A menos que tenham relações muito íntimas, eles se esforçam muito para nunca se esbarrar ou mesmo tocar um no outro. Um cachorro passar por cima de outro é uma violação perigosa da etiqueta, a menos que sejam amigos especiais. Não é incomum que dois cães pertençam à mesma pessoa e vivam na mesma casa, mas nunca prestem atenção um no outro. Temos um spaniel tão digno que nunca permitirá que outro membro da família canina coloque sua cabeça sobre ele; mas, com o egoísmo de um verdadeiro aristocrata, não hesita em recorrer aos outros cães para esse fim.

Muitas vezes a etiqueta canina é tão sutil que é difícil notá-la. Em nossa casa há dois cães incompatíveis que, em circunstâncias normais, ignoram completamente um ao outro, e entre os quais qualquer familiaridade seria ferozmente ressentida. E, no entanto, quando todos estamos caminhando, se eu for obrigado a repreender ou punir um desses dois, o outro correrá até o ofensor, latirá para ele e até o empurrará, como se ele estivesse dizendo: “Bem, velho, você não tem vergonha de si mesmo?” E o outro cachorro, sentindo que está errado, suponho, submete-se humildemente ao insulto.

Uma família de seis cães costumava formar casais, cada casal em termos de intimidade e carinho especiais; e além desses relacionamentos havia muitos outros entre eles. Por exemplo, todos eles se submetiam ao cão mais velho, embora ele fosse menor e mais fraco que os demais. Se uma briga começasse, ele pulava entre os competidores e a interrompia; se um cachorro se comportasse mal, ele atacava o agressor com um rosnado de advertência; e este exercício de autoridade nunca foi ressentido. Os outros cães pareciam respeitar o peso dos anos, o seu carácter, que era dos mais elevados, e a sua coragem moral, que era indubitável. Este mesmo cachorro tinha muitas características humanas. Ele e seus companheiros dormiam juntos num sofá no andar de cima, onde, numa noite fria, se aconchegavam num amontoado indistinguível. Às vezes o velho cachorro deitava-se antes dos outros e depois, descobrindo que precisava do calor e da companhia da presença deles, ia para o corredor, enfiava a cabeça entre os balaústres e choramingava baixinho até que subissem para se juntar a ele.

Os cães têm alguma noção do que é certo e errado? Eles têm, como todos concordam, um senso de humor, e também um senso de vergonha, perfeitamente distinto do medo do castigo. Do seu sentimento de vergonha, deixe-me dar um exemplo. A visão do cão, pelo menos no que diz respeito a objetos estacionários, é muito fraca, sua confiança real está em seu olfato, e muitas vezes vi um cachorro confundir alguém de sua própria família com um animal estranho, correr em sua direção, com todos os sinais de hostilidade, e então, quando chegou a poucos metros do outro cachorro, de repente deixou cair o rabo entre as pernas e saiu furtivamente, como se temesse que alguém tivesse notado seu erro absurdo.

Será que um animal deveria possuir senso de humor e senso de vergonha, sem ter também algum senso elementar de certo e errado? Mas mesmo que se pense que ele é desprovido desse sentido, é certo que ele possui aqueles impulsos bondosos a partir dos quais ele foi desenvolvido. Tudo o que há de melhor no homem surge de algo que é praticamente o mesmo no cão e nele, a saber, o instinto de piedade ou benevolência. A esse instinto, tal como existe nos animais inferiores, Darwin atribuiu a origem da consciência no homem; e agora há poucos filósofos, se é que há algum, que dariam uma explicação diferente disso. Já vi um cachorrinho com menos de seis meses correr para confortar outro cachorrinho que chorava de dor; e o impulso que motivou este ato foi essencialmente o mesmo que impulsiona os mais nobres da humanidade quando fazem amizade com os pobres ou aflitos. Somos semelhantes aos animais inferiores moralmente, bem como física e mentalmente.

Mas esta é uma descoberta moderna. É surpreendente e confuso perceber quão pouco o Cristianismo organizado fez pelos animais inferiores. A concepção eclesiástica deles era simplesmente que eram criaturas sem alma e, portanto, não tinham direitos contra a humanidade ou nas mãos dela. Até hoje, essa concepção permanece, embora seja qualificada, é claro, por outras considerações mais humanas. Até o Cardeal Newman disse:

Não temos deveres para com a criação bruta; não há relação de justiça entre eles e nós. É claro que somos obrigados a não tratá-los mal, pois a crueldade é uma ofensa à santa lei que nosso Criador escreveu em nossos corações, e isso Lhe desagrada. Mas eles não podem reivindicar nada de nossas mãos; em nossas mãos eles estão absolutamente entregues. Podemos usá-los, podemos destruí-los a nosso bel-prazer: não para nosso prazer desenfreado, mas ainda assim para nossos próprios fins, para nosso próprio benefício e satisfação, desde que possamos dar um relato racional do que fazemos.

Esta posição, embora talvez não seja cruel em si, resulta inevitavelmente em crueldades ilimitadas. Quando um viajante inglês censurou uma senhora espanhola por ter atirado um gatinho doente pela janela, ela justificou-se dizendo que o gatinho não tinha alma; e esse é o ponto de vista nacional.

O protestantismo tem sido quase tão indiferente quanto o catolicismo aos animais inferiores. Na verdade, a consciência que existe fora da igreja, católica ou protestante, neste assunto, superou a consciência da igreja. “A crueldade”, disse Du Maurier, “é o único pecado imperdoável”; e o mundo está lenta mas seguramente chegando a essa opinião. O despertar há muito adiado da humanidade para o sofrimento dos animais não se deveu a um declínio da concepção eclesiástica deles, nem mesmo ao novo conhecimento relativo à origem comum do homem e dos animais; na verdade, precedeu ligeiramente esse conhecimento; mas foi devido ao esclarecimento gradual e ao aperfeiçoamento moral da raça, especialmente da raça de língua inglesa. O século XIX, como muitas vezes nos dizem, assistiu a mais descobertas e invenções do que as que tinham sido feitas nos seis mil anos anteriores; mas acredito que nas eras futuras nem uma dessas descobertas e invenções, nem todas juntas, serão tão importantes como fatores de desenvolvimento e elevação do homem, como o serão aquelas leis e sociedades humanas que surgiram pela primeira vez naquele século.

O progresso da humanidade é muito mais moral do que intelectual. As autoridades competentes dizem-nos que o anglo-saxão de hoje é mentalmente inferior ao grego que viveu há dois mil anos: e se a raça humana melhorou durante esse tempo, não é tanto porque o homem avançou no conhecimento, mas porque ele adquiriu mais simpatia pelos seus inferiores, sejam eles brutos ou humanos, mais generosidade, mais misericórdia para com eles. Nem Stevenson, nem Faraday, nem Morse, nem Fulton, nem Bell, fizeram tanto pela raça humana, para não falar dos brutos, como fez aquele duelo irlandês que, no ano de 1822, propôs no Parlamento Inglês, em meio a uivos e gritos de escárnio, o que mais tarde se tornou a primeira lei para a proteção de animais mudos já incluída no estatuto de qualquer país. Todo movimento para o alívio da criação bruta originou-se na Inglaterra; e quando amaldiçoarmos John Bull https://pt.wikipedia.org/wiki/John_Bull_(personagem) por uma coisa ou outra, lembremo-nos desse fato para sua honra eterna!

É difícil separar-se de um velho amigo cachorro sem esperança de encontrá-lo novamente, é difícil acreditar que o espírito de amor que queimava tão firmemente nele se extinguiu para sempre. Mas para aqueles que defendem o que chamei de concepção eclesiástica dos animais inferiores, nenhuma outra visão é possível. O devoto católico e poeta requintado, Dr. Parsons, expressou lindamente este fato:

Quando os pais morrem, há muitas palavras a dizer—
Palavras amáveis, consoladoras – sempre se pode rezar;
Quando as crianças morrem, é natural contar
A mãe deles: “Certamente está tudo bem com eles!”
Mas para um cachorro, essa era toda a vida que ele tinha,
Já que a morte é o fim dos cães, seja boa ou má.
Este era o seu mundo, ele estava contente aqui;
Não imaginei nada melhor, nada mais querido,
Do que sua jovem amante; não buscou nenhuma esfera superior;
Não tendo pecado, pediu para não ser perdoado;
Nunca adivinhei sobre Deus nem sonhei com o paraíso
Agora ele faleceu, tanto amor
Sai da nossa vida, sem uma esperança no céu!

Mas não há esperança? Não há tanta — ou, se o leitor preferir, tão pouca — esperança para o cão como há para o homem? Anos atrás, lembro-me de ter lido numa importante revista a declaração de que, sem dúvida, alguns homens, os mais iníquos, serão extintos com a morte, ao passo que o resto da humanidade será imortal. Esta visão tinha alguns adeptos na época, mas agora seria considerada irracional por quase todos. Quem pode acreditar que entre o melhor e o pior homem exista um abismo que justifique um destino tão diverso! Além disso, aprendemos que não existem abismos ou saltos na natureza. Uma coisa desliza para outra; toda criatura é um elo entre duas outras, e o próprio homem pode ser rastreado física, mental e moralmente até os animais inferiores.

Não é então razoável supor que a imortalidade pertence a todas as formas de vida ou a nenhuma, que se o homem é imortal, o cão também o é? Até mesmo especular sobre este assunto parece quase ridículo, pois nosso conhecimento é tão limitado; e ainda assim é difícil evitar especulações. A transmigração das almas pode ser um fato, ou os homens, os cães e todas as outras formas de vida podem ser simplesmente formas, fases temporárias, procedendo de uma fonte e a ela retornando. Mas, infelizmente, todas as suposições que podemos fazer tornam-se quase, se não totalmente insustentáveis, pelo simples fato de o intelecto humano as ter concebido – é tão improvável que encontremos a solução certa!

Nesta situação, o que parecemos obrigados a fazer é abster-nos de conclusões precipitadas, e especialmente egoístas, para manter as nossas mentes abertas, para considerar os animais inferiores não apenas com piedade, mas com uma certa reverência. Não sabemos o que ou de onde são; mas sabemos que a natureza deles se assemelha à nossa; que eles têm Individualidade, como nós a temos; que sentem dores, tanto físicas como mentais, que são capazes de afeto; que, embora inocentes, como acreditamos, os seus sofrimentos foram e são indescritíveis. Não há mistério aqui?

Para muitos homens, talvez para a maioria dos homens, um cão é simplesmente uma máquina animada, desenvolvida ou criada para a conveniência da raça humana. Pode ser que sim; e mais uma vez pode acontecer que o cão tenha o seu lugar de direito no universo, independente e independente do homem, e que um dano causado a ele seja um insulto ao Criador.


Notas:

Procurei ser fiel ao estilo da época e mantive substantivos, pronomes, gêneros e plurais.

Repare na ironia do autor ao estocar as nobres famílias da Nova Inglaterra e o ressentimento dirigido a um amigo não identificado, preconceituoso de suas atitudes liberais.

Henry Childs Merwin é conhecido universalmente por ter escrito “Thomas Jefferson

Sobre Certezas, Incertezas, Felicidade…

Em 2024 falta-nos não apenas um capitão confiável com uma tripulação competente, mas também uma carta náutica e uma bússola pelas quais um capitão possa navegar.

Imagem: pexels.com

Certezas, Incertezas

Por estes tempos a incerteza exaspera muitos de nós. Numa época de polarização, de negação não apenas das opiniões, mas também da própria humanidade daqueles de quem discordamos, poderemos abrir algum terreno comum? Aqui no meu canto eu defendo a tolerância e a liberdade de expressão. Isso inclui reconhecer os direitos de outros seres humanos de ter opiniões e aderir a valores que eu considero odiosos.

O problema surge quando a tolerância se transforma em relativismo; quando abraçamos a incerteza tão completamente que não vale mais a pena defender quaisquer valores ou princípios. Por exemplo, como podemos argumentar que os Taliban estão errados ao excluir as meninas da escola se em nossa sociedade não temos princípios sólidos sobre os quais defender que as meninas têm, de fato, direitos e oportunidades iguais na educação?

Esta falta de certeza sobre quais são os valores subjacentes da sociedade injeta um sentimento de precariedade em todos os níveis da vida social. É claro que esses valores fundamentais mudaram ao longo da história, por vezes de forma convulsiva. A ideia de igualdade universal entre os seres humanos teria sido absurda para a maioria dos nossos antepassados. A discussão pública sobre os valores mais profundos da sociedade foi essencial para mudá-los tanto na prática como na teoria.

Ao entrarmos num novo ano, sob a égide das redes sociais sem controle e das múltiplas plataformas de “inteligência artificial”, esta é a questão mais profunda sobre a incerteza: sobre o que devemos ter certeza, e como podemos justificar essa certeza para nós mesmos e para os outros? Sem tolerância no diálogo não podemos testar ideias umas contra as outras, ou reter o sentimento básico de que a humanidade de uma pessoa é valiosa, por mais fortemente que rejeitemos as suas ideias.

Sem um forte compromisso com valores fundamentais não teremos defesa contra as ideias terríveis que circularão pela rede este ano – exceto dizer que não gosto de como elas me fazem sentir.

Poderemos algum dia afirmar que nossas ideias são as melhores? Infelizmente não de todo. Podemos até testá-las contra os melhores argumentos opostos, mas em algum momento terá que haver um salto de fé envolvido em colocá-las em ação. Mas algumas ideias são de fato melhores que outras e vale a pena lutar por elas. Disso devemos ter certeza.

Sobre a Tal Felicidade

Em algum momento da história recente as pessoas esqueceram de como se divertir, de se divertir de verdade. Em vez disso, a diversão se transformou em trabalho, às vezes mais do que o verdadeiro trabalho, e esse é o estado em que estamos agora.

Cheguei a conhecer o tempo em que “a felicidade era uma pluma/que o vento ia levando pelo ar…”

A diversão agora se tornou forçada, exaustiva, programada, categorizada, intensiva, exagerada, performativa.

Olho ao redor e vejo pessoas adultas ridiculamente se fotografando — uma foto após a outra — pretendendo fazer algo parecido com “diversão”. Olhe pra mim! Me divertindo muito!

Isso me sugere fortemente que a verdadeira diversão acabou. Quando há podcasts sobre felicidade; estudos acadêmicos e estatísticas sobre felicidade; oficinas de “funtervenção”; professores comediantes; além de vários aplicativos para monitorar a felicidade, duas coisas se tornam bastante claras: a diversão está em sérios apuros e precisamos desesperadamente de alegria.

Coisas que por muito tempo foram super divertidas agora sobrecarregam, esgotam e incomodam. A temporada de férias é um exercício prolongado de barulho e caos. Em vez de relaxar na época mais maravilhosa do ano, lutamos contra o cansaço, perdidos em uma orgia de consumo.

A praia deixou de ser um dia inteiro, um oásis de descanso e relaxamento. Os veranistas agora precisam plantar uma cadeira – ou talvez oito cadeiras sob uma tenda completa com sistema de som – ao nascer do sol, e depois transportar 250 quilos de tralha em uma carroça de praia do tamanho de um Tesla Truck – que também não existia quando apenas um livro e uma toalha bastavam. Depois de todo esse trabalho a maioria das pessoas inicia a execrável rotina de olhar para seus telefones em vez do maravilhoso azul profundo.

Os casamentos se transformaram em extravagâncias de estresse em vários estágios, ao mesmo tempo em que funcionam como vias expressas para a insolvência bancária. Os casamentos se tornaram muitas coisas, mas diversão não é uma delas.

O que poderia ser um motivo maior de alegria ou mais natural do que ter um filho? Aparentemente, não muito hoje em dia. A paternidade é planificada e exagerada, incorporando mais e mais eventos absurdos que drenam as poupanças e que não existiam há algumas décadas: chás-de-bebê tão exagerados que chegam a envergonhar os megacasamentos.

As aposentadorias agora devem ter “um propósito” – além de oportunidades para crises agudas de identidade. Você precisa ter um plano, uma missão, “um coach”, uma grade compacta de atividades diárias codificadas por cores, em uma cultura onde nossos empregos são nossas identidades, e nosso valor está vinculado ao trabalho.

Precisamos realmente disso tudo?

***

Minha prece é que em 2024 eu e você possamos discutir livremente nossas frágeis certezas e iniciar o retorno a um mundo mais simples e verdadeiro. Que o ano seja simplesmente feliz para nós todos.

Pequena Ode à Matemática

Acho maravilhosas as histórias de aprendizagem ao longo da vida. Em algum momento da minha vida eu também tive que perceber que o aprendizado era em si mesmo a chave para a realização pessoal, e não uma ferramenta para criar coisas.

Matemática
Imagem: pexels.com

Levei metade do meu tempo sobre este planeta para perceber que nossas criações são marcadores temporários de nosso crescimento e tendem a ser pontos culminantes, isolados, na vida; aqueles do quais nos lembramos. Mas somente o aprendizado constante e anônimo nos permite continuar a crescer.

Eu amo matemática desde que me vi sentado em uma aula de álgebra na 5ª série – o mundo adulto finalmente estava ao meu alcance, fantasiava eu inocentemente. Não foi até o colegial técnico, no entanto, quando fui apresentado ao conceito de números imaginários e a raiz quadrada de menos um, que comecei a ver na matemática uma certa mágica que estranhamente desafiava a lógica, em vez de defini-la.

Uma vez que você vê alguém usar abstrações matemáticas para resolver problemas do mundo real, você começa a ver Deus na máquina. A multiplicação de 1 por i, a unidade imaginaria (1 x i) é geometricamente equivalente a uma rotação de 90 graus. Assim, podemos usar esse princípio para fazer algo concreto. E, de fato, fazemos; esse princípio é usado nos smartphones para mapear a rotação da tela. Portanto, às vezes é preciso entrar no reino dos números imaginários para encontrar uma solução – multiplicar por i – que pode ser aplicada aos problemas do mundo real. Mas os professores parecem nunca nos dar exemplos simples como esse em sala de aula.

Por um aprendizado natural

Se a matemática fosse ensinada às crianças na escola primária por verdadeiros amantes da matéria, provavelmente encorajaríamos mais crianças a apreciar a matemática e toda a sua maravilhosa simplicidade. Ou se talvez o ensino de matemática pudesse começar com a teoria dos conjuntos – que traz conceitos instintivos (união, intersecção, pertencer, não pertencer) – ao invés da abstrata teoria dos números e suas operações.

Nosso sistema de ensino obriga os professores a focar em um rigor desnecessário em que a resposta a um problema colocado sempre deve ser estritamente correta ou incorreta. Isso conflita com a função básica do sistema de ensino que é estimular nas crianças e jovens o exercício do processo mental, o algoritmo do pensamento – para não dizer que, em algumas áreas, também conflita com o Princípio da Incerteza de Heisenbeg.

Como grande parte dos alunos hoje faz seus trabalhos e exames em computadores, os professores não revisam fisicamente o rascunho dos trabalhos escolares/acadêmicos e portanto não vêem o desenvolvimento do processo de pensamento de seus alunos/orientados. Além disso, como a maioria dos professores naturalmente não é acadêmica, por uma questão de praticidade eles ensinam simplesmente da maneira que é indicada na edição do professor do livro didático.

Há muitas maneiras de pensar sobre problemas matemáticos. Se os alunos pudessem ser encorajados a pensar em formas inusitadas e originais de atacar os problemas, talvez então não incutiríamos tanta ansiedade e aversão à matemática na tenra idade.

Beleza e utilidade

Além de bela a matemática também é incrivelmente útil. Assuntos como teoria dos grupos e geometria diferencial, que começaram como matemática pura, desempenharam papéis importantes na física de altas energias e na relatividade geral, respectivamente. O campo relativamente novo da informação quântica é bastante matemático, extraindo resultados da teoria dos grupos – que generaliza a citada teoria dos conjuntos – e da teoria dos números, também acima mencionada, bem como de outras áreas da matemática. Em suma, o universo fala matemática.

Encorajamento familiar

O fator que mais determina como as crianças vêem e se comportam em relação à matemática é o que os adultos lhes dizem. Os pais muitas vezes se tornam o maior obstáculo no aprimoramento dos métodos de ensino de matemática porque eles mesmos trazem uma bagagem equivocada [“você nunca vai usar na vida real”, “matemática é difícil mesmo”]. A pobreza dos estímulos ambientais na era das redes sociais e da economia da atenção também têm sua cota de contribuição para este estado de coisas.

Estudos mostram que mais da metade dos calouros universitários que pretendem se formar em ciências ou engenharia desistem após a primeira aula de matemática na faculdade porque não tiram A e acabam por achar que é muito difícil. Frequentemente os adultos são os principais culpados.

Não podemos ser um país de artistas e sociólogos apenas, por mais exuberantes que eles sejam. Temos necessidade vital de ciência bruta e das várias engenharias. O promissor campo da inteligência artificial usa uma matemática pesada. Temos uma enorme escassez de professores e outros especialistas qualificados em matemática. Não podemos perder de vista o simples fato de que todo nosso estilo de vida baseado na tecnologia depende criticamente da matemática.

Epílogo

Recentemente de volta à universidade para uma nova rodada de estudos, enquanto eu refazia alguns dos cursos tive vários momentos de gratidão às estrelas por ter sempre entendido que aquelas matérias como matrizes, derivações e integrações, e propriedades como a propriedade associativa e a propriedade comutativa, não eram apenas extras inconsequentes; eram fundamentais não apenas para entender matemática, mas para entender muitas outras coisas nos sistemas compostos por humanos.

Desde o início da minha vida profissional, tentei ao máximo vincular a matemática ao mundo real e às “disciplinas do mundo”. Alguns campos da matemática, até aqueles que não consideramos relacionados à matemática, são fundamentais, e podem fazer a diferença em situações pessoais decisivas. Não apenas os campos óbvios da física, química, engenharia e economia.

  • A evolução da história está repleta de conexões com grandes descobertas e desenvolvimentos matemáticos;
  • Obviamente, entender o funcionamento interno do corpo humano depende principalmente da matemática;
  • O mesmo com as artes em geral e a música em particular.

Antes da era romana, os filósofos gregos criaram alguns dos fundamentos da lógica matemática. Após a queda de Roma, os árabes inventaram a álgebra e muitos outros desenvolvimentos. Nossos ancestrais culturais, os romanos, no entanto, embora usassem a geometria constantemente em sua fenomenal engenharia, praticamente nada contribuíram para o desenvolvimento formal da matemática.

Talvez eles estivessem ocupados demais a promover guerras e conquistas.


Se alguém por acaso lê isto, lembro que este é o mês de aniversário do blog – 2 anos, e temi não ter tempo para postar esta peça. Teria sido lamentável; o único mês sem postagem na curta história do blog. Ufa, não desta vez.

A partir de abril vou começar a escrever bastante sobre AI e visão de computador. Na próxima semana trago um post sobre meu sensacional – e único – dataset para visão de computador na pecuária, minha nova paixão. Conteúdo altamente informativo em que o destaque é a busca da adaptação da IA ao ambiente brasileiro. Vamos aprender juntos.

Propostas Para um Mundo um Pouco Melhor

Ninguém gosta de mencionar que a raça humana se tornou simplesmente grande demais para ser sustentada pelo planeta.

Imagem: Pexels.com

É nisso que tem resultado o “progresso tecnológico” na Economia da Vigilância e do rentismo: apenas mais e mais humanos. Para certas elites. a expressão “Crise do Clima” é uma abreviação que elas usam quando querem dizer “humanos em excesso”. E eu diria que, a esse respeito, o Clube de Roma, com sua peroração pelo controle populacional está, a meu ver, provavelmente correto.

Por outro lado, os Clubes em Roma, Londres e Nova York estão cheios de oligarcas que simplesmente detestam a perda de poder e competição que a democracia representa. Eles também sabem que a economia ocidental/americana/dólar está à beira da exaustão e do colapso.

“Sim, podemos” voltar a uma economia do século 18, ou 16, ou 14, mas para fazer isso devemos reduzir a população a um equivalente do século 18. Isso parece agora inevitável e as mentes preocupadas se perguntam se há uma maneira educada de fazer isso. Como desacelerar sem causar caos e destruição em larga escala?

As Elites do mundo parecem desejar ativamente que isso aconteça, e podemos muito bem estar à beira disso. Imagine uma economia e população de estilo medieval, exceto que vigiada e controlada por computadores, em um verdadeiro cenário de pesadelo. E é para onde estamos indo diretamente. Os membros da elite mundial obscenamente rica planejam enfrentar a tempestade na superfície escondendo-se nos luxuosos bunkers subterrâneos que estão a construir febrilmente.

Sair do imobilismo

Os trabalhadores impulsionaram o progresso material até o fim do século 20. Agora são as classes gerenciais que impulsionam o progresso tecnológico e elas são muito bem remuneradas para isso, além de contar com uma ajudazinha do trabalho anônimo dos operadores e técnicos de produção que ganham, quando muito, 50.000 dólares por ano. Poderíamos continuar a manter o mesmo progresso material que tivemos no meio do século 20, se tivéssemos um plano. Mas ninguém o faz.

Aqui está o meu plano. Ele é muito simples, e tem que começar pelos mais jovens porque essa é a única esperança:

  • ensinar as crianças a construir coisas reais: engenharia, arquitetura, carros, motores, estradas, sem prejuízo da Grande Arte e do Ambiente; ensine-as a cozinhar e cultivar alimentos; ensine-lhes economia financeira. Isso leva a:
  • estabelecer um serviço nacional [sei lá como], destinado aos jovens, especialmente alunos de baixo desempenho escolar e social. Este serviço seria o pilar de uma estrutura de estímulo a uma cultura de cooperação, coragem e ousadia, em suma, uma instituição para inflamar os espíritos.
  • reformular os estudos religiosos, bem como os cursos de “educação moral e cívica”, nas escolas estaduais, mudando-os para algo como FPC, filosofia, política e cristianismo – enfim, um bom curso sobre o que realmente importa para nossa civilização.
  • criar envolvimento político obrigatório nas escolas via o que eu [super antigo eu] chamaria de “parlamentos juvenis” [não mais “centros acadêmicos” – por razões que posso explicar nos comentários] e outros campos de aprendizagem para os interessados em política.
  • aperfeiçoar o acrônimo STEM e chamá-lo de STEAM – Ciência, Tecnologia, Engenharia, Artes e Matemática – afinal entre os séculos 18 e 19, quando STEM nasceu, a máquina a vapor, Beethoven e Goethe ocupavam o mesmo plano na ordem das coisas, correto?
  • tornar os smartphones ilegais para menores de 16 anos.
  • qualquer outra coisa que o senso comum já teria feito há 20 ou 30 anos.

Tenho sido relapso com o Blog, mas isso é passageiro. Tem havido na fila muita coisa para ser processada. Mantenho o mesmo entusiasmo do início e a partir de janeiro vamos ter coisas muito legais para postar. Com nossa entrada – no início tímida, tateando – nos serviços de agricultura de precisão [tradução: DRONES!], teremos muito material de qualidade para valorizar a “experiência” dos amigos leitores. Mal posso esperar.

Desejo a todos um belo Natal. Que em 2023 possamos ter muitos momentos de paz, alegria e amor, e triunfar nos empreendimentos. Boa sorte e saúde!

Volto na segunda semana de Janeiro – ou antes!

Um Infográfico para Entender o Velho Dinheiro Inglês – Definitivamente

Recentemente trabalhei em uma pequena aplicação para conversão entre moedas, o que me levou ao desenvolvimento de algo aparentemente inédito – que compartilho hoje com meus leitores.

Imagem: Vox Leone – Clique para ver o infográfico: Português | Inglês

Ao iniciar o trabalho no que deveria ser um simples código de conversão aritmética para a libra inglesa pré-decimal, eu senti que precisava de um guia visual para tornar mais confortável a composição no computador; algo que eu pudesse olhar enquanto digitava. Vasculhei a Internet em busca de uma figura que fosse parecida com o que eu tinha em mente e não encontrei. Comecei a rascunhar um diagrama para poder manter o objeto do assunto em perspectiva.

Me dei conta então que eu tinha em mãos um material novo e diferente para desenvolver. Depois de alguns dias de trabalho no LibreOffice Draw eu tinha pronto o infográfico que compartilho nesta postagem – que pode ser visto aqui, para aqueles que não pretendem ler um texto tão longo (fique à vontade para compartilhar em seu grupo da OpenEnglish, please). Achei que poderia ser interessante e útil para anglófilos, estudantes, viajantes, cidadãos do mundo e curiosos em geral.

Foi possível condensar a informação, de forma que o resultado final pode se sustentar por si próprio (como um poster) e ser compartilhado em aplicativos de mensagem e outros meios orientados à imagem. Eu gostaria de tê-lo postado aqui sozinho em sua própria glória. Mas este blog foi concebido para ter um formato longo — e disso não abro mão. Portanto era imperativo ter um texto para acompanhar a imagem, o que fiz após uma laboriosa pesquisa. Aqui está, então, esse curioso texto que foi penosamente escrito com o único objetivo de servir de escada para uma bela imagem. Esta é a Web. Voilà!

Roma e os Francos

Escrever este post acabou sendo um mergulho no mundo do dinheiro medieval. Durante os meses em que trabalhei nele pude me deter na fascinante Libra Esterlina e seu convoluto sistema duodecimal, que sempre refletiu a intrincada relação entre os vários pesos e medidas que vigoravam nas centenas de feudos e reinos medievais. Pude ter uma visão clara de como a Libra inglesa, herdeira de Roma, assimilou em si valores tradicionais, não necessariamente moedas, que desde tempos ancestrais expressavam equivalência entre pesos de metais diversos.

Como sabemos, depois do colapso do império romano, durante o feudalismo, a Europa era um mundo caótico de minúsculos reinos, costumes, pesos, medidas, leis e moedas. Principalmente moedas. Havia o Albus, no norte da Alemanha, o Denário na França, o Dinar árabe na Ibéria islâmica, o Doblo na Ibéria cristã, e uma profusão de outras na Europa central e península Itálica (o Ducado, o Florim, o Genovino, o Grosso, etc., etc.)

O pai de Carlos Magno, Pepino III, o breve, rei dos Francos – que haviam herdado de Roma seus grandes domínios territoriais – iniciou a revisão desses sistemas monetários fechando as casas de moeda dos grandes magnatas e prelados do Império e estabelecendo os direitos de cunhagem como um privilégio exclusivamente real. No entanto, mesmo com as reformas, o sistema permaneceu confuso. Havia ainda muitas diferenças de valor mesmo entre moedas de mesma denominação – 22 xelins para a libra imperial, xelins extras da casa da moeda, xelins do Tesouro Imperial…

Esse primeiro esforço regulatório de Pepino III deu ímpeto a Carlos Magno para introduzir posteriormente uma reforma mais abrangente e duradoura, que trazia uma padronização muito mais ampla destinada a tornar o Império mais governável.

Ele definiu então o que conhecemos como libra carolíngia, inicialmente como uma nova unidade de peso (408 g), significativamente maior que a antiga libra romana de 328,9 g. Também introduziu uma nova moeda de prata chamada denário, dos quais 240 compunham 1 libra de prata pura. Um denário (também denar ou denier) continha 1,7 g de prata. Para facilitar os cálculos monetários, também foi introduzida uma unidade de conta, o solidus, de modo que 1 solidus = 12 denários. Assim começou o sistema monetário tripartido característico: L 1 = 20s = 240d.

Com o Império de Carlos Magno esse sistema estabeleceu supremacia por toda a Europa ocidental. Após a conquista normanda em 1066, o sistema foi introduzido também na Inglaterra, reproduzindo exatamente o padrão carolíngio do continente: Uma Libra dividida em 20 Xelins (Solidus) e 240 centavos/pennies (Denários).

Esse sistema foi abandonado em 1971 com a decimalização da Libra. Com a decimalização a libra é hoje parecida com quase todos os outros sistemas monetários do ocidente. Genericamente: 1 Unidade Monetária dividida por 100 subunidades agrupadas em certas quantidades de conveniência.

No infográfico abaixo um instantâneo do sistema carolíngio no Reino Unido pouco antes da decimalização, em 15 de Fevereiro de 1971 (decimal day):

Clique aqui para uma versão maior. Aqui a versão em inglês. – Arte: Vox Leone

A seguir uma descrição de cada denominação e alguns fatos a respeito de cada uma delas. Todas as imagens são cortesia de Wikimedia Commons.

Farthing

Farthing, 1913

A menor denominação do sistema da Libra esterlina. Esse vocábulo tem origem no Inglês antigo feorðing, “quarto de um centavo”. No inglês antigo tardio também referenciava uma unidade de divisão de terra; os condados eram costumeiramente subdivididos em quatro farthings (“quadras” ou “quartos”). A palavra cognata tanto do norueguês quanto do dinamarquês antigos significa “uma quarta parte de qualquer coisa.”

O primeiro farthing redondo (de prata) foi emitido em 1279 sob Edward I. Antes dessa data, para troco em espécie nas negociações um penny era dividido fisicamente em duas metades – ou ainda em quatro quartos. Isso era conhecido como halving ou fouring. O têrmo Farthing foi provavelmente derivado de fouring.

No linguajar popular é também sinônimo de algo de pouco valor. A palavra latina correspondente em traduções bíblicas é “quadrans” – quarto de denário.


Meio penny – Ha’penny [half penny]

Meio penny, 1967

O meio “centavo” moderno sobreviveu de 1672 a 1967, mas essa denominação pode ser encontrada na história inglesa já por volta do ano 890. O half penny era coloquialmente escrito como ha’penny e pronunciado HAY-pə-nee. Muitas expressões idiomáticas ainda fazem referência ao half penny, como “two ha’pennies for a penny” – ‘trocar seis por mea duzia’. Na gíria das ruas era uma referência à vulva.

O ‘half penny carolíngio’ foi retirado em 1971 na decimalização, e substituído pelo meio centavo novo decimal, com 1/2p valendo 1,2d.


Penny

Penny, 1963

O penny inglês, de origem carolíngia, é uma fração de 1/240 libra. Acho um tanto desconfortável me referir a ele como ‘centavo’ [centésima parte], segundo o costume da língua portuguesa. Neste texto eu procuro manter o vocábulo original inglês, por falta de um melhor.

O plural de “penny” é “pence” quando se refere a uma quantidade de dinheiro, e “pennies” quando se refere a várias moedas.

Os reinos da Inglaterra e da Escócia foram fundidos pelo Ato de União de 1707 para formar o Reino Unido da Grã-Bretanha. Assim, em 1707 a moeda escocesa deixou de ter curso legal, com a libra passando a ser usada em toda a Grã-Bretanha. O penny veio a substituir o xelim escocês.

O design e as especificações da moeda esterlina de um penny ficaram inalterados pela unificação, de modo que ela continuou a ser cunhada em prata depois de 1707.

Em tempos antigos o penny podia ser combinado em dois para formar o two pence (2d), e em quatro constituindo o groat (4d).


Três pence – Three pence

Três pence, 1942

A moeda de três pence (3d), entrou em circulação pela primeira vez em meados do século XVI, durante a era do rei Eduardo VI. Valia 1/80 de uma libra, ou ¼ de um xelim. A moeda permaneceu em circulação, em várias versões, até a entrada em vigor da libra decimal.

O três pence sofreu muitas mudanças ao longo dos séculos. Enquanto algumas épocas os tiveram emitidos para circulação geral, outros períodos usaram o três pence como dinheiro cerimonial [ver maundy money]. Como moeda, a denominação chegou a ser cunhada em níquel-latão, pesando 6,8 g e medindo 21 mm, e em prata, como uma moeda de 1,5 g, com um diâmetro de 16,2 mm.


Seis pence – Sixpence

Seis pence, 1962

Os primeiros seis pence foram cunhados em 1551, também sob Eduardo VI. Eles surgiram como resultado da degradação da moeda de prata na década de 1540, em particular o testoon de prata, que caiu em valor de 12d para 6d. O testoon mesmo degradado ainda era útil em transações cotidianas, e assim foi decidido que ele devia ser transformado em uma nova moeda com a denominação de “seis pence”.

O testoon se desvalorizou porque na época, ao contrário de hoje, o valor das moedas era determinado pelo valor de mercado do metal que continham. Durante o reinado de Henrique VIII, a pureza da prata na cunhagem havia caído significativamente.

Os seis pence foram emitidos durante o reinado de todos os monarcas britânicos após Eduardo VI, bem como durante a Commonwealth, com um grande número de variações e alterações ao longo dos anos.

(*) Em 2016, a Casa da Moeda Real começou a cunhar moedas decimais de seis pence em prata, destinadas a serem compradas como presentes de Natal. Essas moedas são mais pesadas que os seis pence anteriores a 1970 (3,35 gramas em vez de 2,83 gramas) e têm a denominação de seis pence novos (6p) em vez de seis pence antigos (6d).


Xelim – Shilling

Xelim, 1963

Uma moeda fiduciária por direito próprio. Foi usado como dinheiro soberano por muitos reinos europeus [ver wiki]. O xelim inglês teve origem, como o seis pence, no já mencionado ‘testoon’, que foi emitido em 1504 sob o reinado de Henrique VII. Um testoon valia 12 pence e era feito de prata. O testoon continuou durante o reinado de Henrique VIII. O testoon de 12 pence foi finamente renomeado como xelim durante o reinado de Eduardo VI.

Depois disso, o xelim circulou sob todos os monarcas reinantes, exceto Eduardo VIII. É interessante notar que o primeiro xelim da era do Reino Unido foi cunhado em 1816, mais de um século após o Ato da União.

O xelim era uma moeda de prata popular. No entanto, foi regularmente degradado pelo vandalismo e perdeu valor ao longo dos anos. O valor do xelim voltou a aumentar quando Elizabeth I retirou de circulação todas as moedas degradadas e as substituiu com moedas recém-cunhadas.

Os xelins circularam amplamente por muitos séculos. Para estimar o poder de compra do xelim, é preciso especificar o período de tempo em que a moeda foi usada.

  • década de 1940

Durante a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, um xelim poderia comprar itens domésticos comuns, como um pão ou uma barra de sabão. À medida que a economia sofria com a guerra, o custo dos bens básicos aumentava. Isso significava que, entre 1939 e o fim da guerra, o preço do leite havia subido de 3 para 9 pennies (quase um xelim) por litro.

  • década de 1960

Na década de 1960, ainda se podia comprar um pão com um xelim; ou um corte de cabelo; ou abastecer seu carro com pouco menos de 1 litro de gasolina – que na época era vendida em galões.

  • década de 1970

Na década de 70, um xelim podia pagar um telefonema de 3 minutos, um litro de leite entregue em sua casa pelo leiteiro – este com preço congelado pelo então socialismo inglês junto com outros itens essenciais, como pão ou jornais.


Florim – Florin

Florim, 1967

O ‘fiorino d’oro’ da República de Florença foi a primeira moeda de ouro europeia desde o século VII a ser cunhada em quantidade suficiente para desempenhar um papel comercial significativo.

O termo florim foi usado como empréstimo em outros lugares da Europa. Assim, houve um florim inglês emitido pela primeira vez em 1344 por Eduardo III. Era cunhado a partir de 108 grãos (6,99829 gramas) de ouro puro (‘fino’) e tinha o valor de seis xelins (equivalente a 30 pence pré-decimais). Conhecido como o “double leopard” (leopardo duplo), foi uma tentativa de Eduardo III de produzir moedas de ouro que pudessem ser usadas tanto na Europa continental quanto na Inglaterra.

Contemporaneamente, o florim britânico de dois xelins (2s) foi um experimento precoce no sentido da decimalização da moeda, com seu valor de 1/10 de uma libra, ou 24 pence. Foi emitido de 1849 a 1967, com uma emissão final para colecionadores em 1970. Foi a última moeda a ser desmonetizada antes da decimalização.


Meia coroa – Half crown

Meia coroa, 1967

A meia coroa foi emitida pela primeira vez em 1549 durante o reinado de Eduardo VI. Eduardo VI foi rapidamente sucedido pela rainha Maria, mas nenhuma meia coroa foi produzida durante o reinado de Maria, entre 1553 e 1558. Elizabeth I assumiu o trono entre 1558 e 1603. Durante seu reinado e todos os reinados posteriores até 1970 – excluindo apenas Edward VIII – as meias coroas foram emitidas. Apenas em 1970 a meia coroa foi abolida, um ano antes da decimalização.


Nota de Dez Xelins – Ten Bob Note

Nota de dez shillings

A cédula de emergência.

Em agosto de 1914, a economia britânica estava em crise devido à instabilidade causada pela “neblina da guerra” no continente. Banqueiros e políticos procuravam desesperadamente maneiras de proteger as finanças da Grã-Bretanha e impedir que os bancos entrassem em colapso.

O Governo decidiu que deveria ser disponibilizada uma grande oferta de notas no valor de 10 xelins, facilitando ao público a realização de pequenas transações.

No entanto, o Banco da Inglaterra não foi capaz de preparar e imprimir o número necessário de notas com rapidez suficiente. O governo então tomou a medida sem precedentes de emitir as notas por conta própria.

Essas notas ficaram conhecidas como Notas do Tesouro e eram diferentes de tudo que o público britânico já tinha visto. Até este ponto, a nota de menor denominação era a de £ 5 – que naqueles dias era uma quantia tão grande que muitas pessoas nunca teriam visto ou usado a nota.

Ao emitir uma nota de 10 xelins, o Tesouro criou as primeiras notas de grande circulação na Inglaterra. A nota de 10 xelins – que equivalia a meia Libra – foi a menor denominação de nota já usada no Reino Unido e acabou sendo substituída modernamente pela moeda de 50 pence, que foi introduzida já em 1969, dois anos antes do decimal day.


Libra – Pound

Libra, ca. 1960

Discorrer sobre a Libra neste ponto não faria sentido. Nada posso dizer que já não tenha sido dito, e obviamente não tenho nada original para dizer. Para aqueles que pretendem se aventurar no assunto eu digo que a pequena pesquisa que empreendi para este trabalho me mostrou que há muitas nuances, interpretações e fontes – muito poucas na língua portuguesa. Deixo um humilde link como sugestão de por onde começar.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Libra_esterlina

Posso dizer, no entanto, que a libra é [ou era] conhecida na gíria como Quid. Acredita-se que o termo tenha origem na expressão latina “quid pro quod”, que designa uma troca [“isto por aquilo”] — o que é perfeitamente adequado em se tratando de uma moeda. Foi chamada também de Soberano. Algumas denominações fracionárias da libra citadas neste trabalho já não existiam em 1971.


Guinéu – Guinea

Um guinéu de 1797, anverso e reverso

O Guinéu foi introduzido pelo rei Carlos II em 1663, logo após a Restauração. Foi cunhado em ouro de 22 quilates importado pela primeira vez da Guiné na África Ocidental, daí o nome. Originalmente, a moeda da Guiné foi definida como valendo exatamente uma libra, ou 20 xelins. No entanto, o preço de mercado do ouro aumentou e, na década de 1680, as pessoas exigiam 22 xelins por guiné em vez dos 20 oficiais. Em 1700, o preço havia subido ainda mais, para 30 xelins, de modo que um guinéu valia efetivamente uma libra e meia – este é o problema de basear o valor de uma moeda em uma mercadoria negociável como o ouro: seu valor flutua com a oferta e a demanda.

Durante o início do século 18, o preço do ouro voltou a cair para os níveis de 1680. Em 1717, o rei George I fixou a taxa de câmbio entre moedas de ouro e prata por decreto, com valor de mercado de 21 xelins por guinéu.

Em outras palavras, depois de 1717 existiu uma moeda que valia uma libra mais um xelim (21 xelins, ou 252 pennies), mas nenhuma moeda valia exatamente uma libra. O soberano não estava em circulação no século XVIII: foi introduzido em 1817.

Como um guinéu valia 5% a mais do que uma libra, tornou-se um símbolo de status precificar itens de luxo, como roupas e joias, em guinéus, em vez de libras. Um oficial naval de classe média comprava seu uniforme por cinco libras; o alfaiate ao lado atendendo a um oficial mais aristocrático poderia vender o mesmo uniforme por cinco guinéus, porque seus clientes eram ricos o suficiente para ignorar a margem de 5% e gostavam de ostentar isso. Da mesma forma, um carpinteiro poderia cotar seus preços em libras, mas um advogado cotaria seus honorários em guinéus.

Referências

Les réformes monétaires carolingiennes

https://www.persee.fr/doc/ahess_0395-2649_1952_num_7_1_2021

https://www.etymonline.com/

https://coinsite.com/

https://wblog.wiki/

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https://blog.westminstercollection.com/