Sobre Cães e Homens

Amigo e protetor dos cães que sou, sempre quis postar algo sobre eles. Hoje, uso como pretexto – na falta de um melhor – o primeiro dia de minha estação favorita para apresentar minha tradução deste ensaio de Henry Childs Merwin, “On Dogs and Men”, publicado na edição de Janeiro de 1910 da revista “The Atlantic”. Um texto longo para as noites mais longas.

Yoko, minha pretinha.
Yoko, que me leva a passear todos os dias. Ao fundo, Ghanima. EBM/VL

EXISTEM homens e mulheres no mundo que, por sua própria vontade, vivem uma vida sem cães, sem saber o que estão a perder; é para eles que este ensaio, colocado com segurança na digna “The Atlantic”, para permanecer aqui enquanto durarem as bibliotecas e os livros, foi escrito principalmente. Que eles não ignorem isto com desprezo, mas antes parem para considerar o que pode ser dito sobre os cães, como seres com direito à sua simpatia e que têm, talvez, destino semelhante ao seu.

Quanto às poucas pessoas que não apenas não têm cães, mas que também os odeiam, deveriam provocar mais pena do que ressentimento. O homem que odeia um bom cachorro é anormal e não pode lutar contra isso. Certa vez conheci um homem assim, um agiota falecido há muito tempo, cuja vida foi em grande parte uma cruzada contra os cães, realizada através de jornais, panfletos e conversas. Ele costumava declarar que já havia sido mordido muitas vezes por esses animais e que, certa vez, um terrier pulou no bonde em que ele viajava e arrancou-lhe um pedaço da perna (um mero arranhão, com certeza), e então saltou em fuga – tudo sem provocação aparente, e tudo de repente. Provavelmente esta história, por mais estranha que possa parecer, fosse substancialmente verdadeira. As percepções do cão são maravilhosamente aguçadas.

Uma ocorrência recente pode servir como o inverso da história do agiota. Um collie perdido, coxo e quase morrendo de fome, foi acolhido, alimentado e cuidado por uma família de pessoas caridosas, que, no entanto, não gostavam nem entendiam os cães, e estavam ansiosas para se livrar deste, desde que um bom lar pudesse ser encontrado para ele. No decorrer de uma semana, veio visitá-los em sua charrete uma senhora que gosta muito de cães e que possui aquela combinação de espírito dominador com aquela profunda afeição que age como bruxaria sobre os animais inferiores. O collie foi trazido e a história de seu resgate foi contada detalhadamente. Enquanto isso, a velha senhora e o cachorro olhavam-se fixamente nos olhos. “Você quer vir comigo, cachorrinho?” ela disse sem convicção, sem realmente querer levá-lo. O cachorro então pulou e sentou-se ao lado dela, e não pôde ser desalojado por quaisquer súplicas ou comandos – e todas as partes relutavam em usar a força. Ela o levou para casa, mas o trouxe de volta no dia seguinte, com a intenção de deixá-lo para trás. Mais uma vez, porém, o cão recusou-se a se separar de sua nova e verdadeira amiga. Ele abanou o rabo superficialmente a seus benfeitores – ele não queria ser ingrato e, como todos os cães, ele não procurava interesseiramente carne e ossos e um lugar confortável perto do fogo, mas sim carinho e carícias. Não vive o cão que se recusaria a abrir mão do jantar pela companhia do dono.

A missão do cão – digo-o com toda a reverência – é a mesma do Cristianismo, nomeadamente, ensinar à humanidade que o universo é governado pelo amor. A companhia de um cachorro tende a amolecer os corações duros dos homens. Existem dois grandes mistérios sobre os animais inferiores: um, o sofrimento que eles têm de suportar nas mãos do homem; o outro, a riqueza de afeto que possuem e que, em sua maior parte, não conseguem gastar. Todos os animais têm essa capacidade de amar outras criaturas, incluindo o homem. Os corvos, por exemplo, demonstram isso de forma notável. “Tanto afeto latente há em cada bando de corvos que sobrevoam o céu quanto caberia a uma família humana amorosa.” Um corvo e um cachorro, se mantidos juntos, se tornarão quase tão afeiçoados um pelo outro quanto por seu dono. Certamente este fato, esta capacidade dos animais inferiores de amarem, não apenas o homem, mas uns aos outros, é o mais significativo, o mais merecedor de ser ponderado, o mais importante no que diz respeito ao seu lugar no universo, de todos os fatos que pode ser aprendido sobre eles. Comparado com isso, quão trivial é qualquer coisa que o zoólogo, o biólogo ou o fisiologista possa nos dizer sobre a natureza dos animais inferiores!

A visão mais linda do mundo, ouvi dizer uma vez (de mim mesmo, para ser honesto), é a expressão nos olhos de um cachorrinho inteligente e de temperamento dócil – um cachorrinho com idade suficiente para se interessar pelas coisas sobre ele, e ainda assim tão jovem que imagina que todas as pessoas serão boas para ele; tão jovem que não teme que algum homem ou menino lhe dê um chute, ou que algum cachorro lhe tire o osso. Nos olhos de tal cachorrinho há um olhar de inocência confiante, uma consciência de sua própria fraqueza e inexperiência, um desejo de amar e ser amado, que são irresistíveis. Nos cães mais velhos é mais provável notar um olhar ávido, ansioso e indagador, como se estivessem se esforçando para compreender coisas que o Todo-Poderoso colocou além de seu alcance mental; e a abordagem mais próxima de uma expressão realmente humana é vista em cães que sofrem de doenças. Heine, que, como o leitor bem sabe, serviu durante um longo aprendizado na dor, diz em algum lugar que a dor refina até os animais inferiores; e todos os que estão familiarizados com cães, tanto na saúde como na doença, verão a verdade desta afirmação. Vi no rosto de um cão inteligente, sofrendo gravemente de cinomose, uma aparência tão humana que chega a ser quase aterrorizante; como se eu tivesse acidentalmente vislumbrado alguma característica profunda no animal que a natureza pretendia esconder do olhar mortal.

O cão, de fato, apela continuamente à simpatia de seus amigos humanos e, assim, os protege de se tornarem duros ou mesquinhos. Existem certas famílias, talvez especialmente na Nova Inglaterra, e acima de tudo, sem dúvida, em Boston, que precisam ser regeneradas, e podem ser regeneradas pela companhia de um cachorro, desde que o façam com o espírito adequado. Um ilustre pregador e autor, ele próprio um unitarista, comentou recentemente num discurso aos unitaristas que eles eram geralmente as pessoas mais satisfeitas consigo mesmas que ele já havia conhecido. Foi uma observação casual, e talvez nem ele nem aqueles que a ouviram tenham apreciado todo o seu significado. No entanto, o pregador provavelmente não estava pensando tanto nos unitaristas, mas sim em um certo tipo de pessoa frequentemente encontrada nesta vizinhança, e não necessariamente professando qualquer forma particular de religião. Todos nós conhecemos o tipo. Quando um homem tem dinheiro no banco, é respeitável e respeitado, formou-se em Harvard, tem esposa e filhos decorosos, nunca se deixou levar por nenhuma paixão ou entusiasmo, conhece as pessoas certas e se conforma estritamente aos costumes da boa sociedade; e quando esse tipo de coisa vem acontecendo há, talvez, duas ou três gerações, então é provável que se lhe insinue no sangue uma frieza que gelaria o coração de uma estátua de bronze. Tais pessoas são realmente elementos degenerados de sua espécie peculiar e precisam ser salvas, talvez por meio de medidas desesperadas. Deixe-os fugir com a cozinheira; deixe-os entrar para uma religião do tipo metodista violento ou de tipo ritualista intenso (os dois têm muito em comum); ou se não puderem fazer isso, deixe-os arranjar um cachorro, dar-lhe o cuidado da casa, amá-lo e mimá-lo, e assim, pela bênção da Providência, eles poderão alcançar a salvação.

Os reformadores e filantropos deveriam sempre ter cães, para que o elemento de espontaneidade não desapareça completamente deles. A tendência deles é considerar a raça humana como um problema, e pessoas específicas como “casos” a serem tratados, não de acordo com os impulsos de cada um, mas de acordo com certas regras aprovadas pela boa autoridade, e supostamente consistentes com princípios econômicos sólidos. Princípios.

Para meu velho amigo ‘ ——‘, que antes gostava de mim pelo que sou, sem perguntar por quê, há muito deixei de ser um indivíduo e agora sou simplesmente um item da humanidade a quem ele deve obrigações – como minhas necessidades ou vícios particulares parecem indicar. Mas se ele tivesse um cachorro, não iria tratá-lo dessa maneira impessoal, nem se preocupar com a moral do cachorro; ele simplesmente sentiria prazer em sua companhia e o amaria pelo que ele fosse, sem considerar o que ele poderia ter sido. [ver notas]

Conheço e honro um filantropo que, na meia-idade ou próximo disso, tornou-se pela primeira vez dono de um cachorro; e daí em diante revelou-se nele uma veia genuína de sentimento e afeição que os muitos anos de prática do bem e de uma vida virtuosa não conseguiram erradicar. Muitas vezes eu tinha ouvido falar de seus feitos cívicos e de suas bem dirigidas instituições de caridade, mas meu coração nunca se entusiasmou com ele, até que soube que, com óculos no nariz e pente na mão, ele havia passado três laboriosas horas examinando dolorosamente o rosto de um spaniel, e eliminando aqueles hóspedes parasitas que às vezes infestam a pelagem do cão mais limpo e aristocrático. Não tenho vergonha de dizer que tenho agora uma confiança em sua sabedoria que não tinha antes, sabendo que sua cabeça nunca poderá tiranizar seu coração. Seu nome deveria ser registrado aqui, não fosse sua modéstia ofendida pelo ato. (Três letras seriam suficientes para imprimi-lo.)

Ao falar do cão como uma espécie de missionário na casa, quero dizer – nem é preciso dizer – algo mais do que a mera propriedade do animal. Não será suficiente pagar uma grande soma por um cão de raça elegante, equipá-lo com uma coleira cara e depois relegá-lo ao estábulo ou à cozinha. Ele deve fazer parte da família, viver em igualdade de condições com os demais e ser seu companheiro constante. A vida do cão é, na melhor das hipóteses, curta e cada momento será necessário para o seu desenvolvimento. É maravilhoso como ano após ano o animal doméstico cresce em inteligência, quantas palavras ele aprende o significado, quão rápido ele se torna na interpretação do olhar, do tom de voz, do humor da pessoa que ele ama. Ele envelhece aos dez ou onze anos e raramente vive além dos treze ou quatorze anos. Se ele vivesse até os cinquenta anos, saberia tanto que ficaríamos inquietos, talvez aterrorizados, em sua presença.

Uma certa disciplina é necessária para um cão. Se for deixado por conta própria, ele poderá se tornar um tanto dissipado, passar as noites fora, espalhar entre muitos o afeto que deveria ser reservado a poucos. Mas, por outro lado, um cão pode facilmente receber disciplina demais; ele se torna como o filho de um pai despótico. Um cão perfeitamente treinado, um que nunca “pula” em você, nunca coloca uma pata suplicante em seu braço, nunca sobe em uma cadeira, nem entra na sala de estar, – tal cão é uma visão triste para quem realmente conhece e ama os cães. É contra sua natureza ser tão reprimido. Donas de casa excessivamente cuidadosas, e pessoas que estão sobrecarregadas com ambientes dispendiosos, falam em danificar tapetes e outros móveis se o cão tiver direito de entrar em todos os lugares da casa. Mas para que servem os móveis? É para exibição, é garantia da riqueza dos proprietários ou é para uso? Bem-aventurados aqueles cuja mobília é tão barata ou tão pobre que as crianças e os cães não são excluídos dos seus recintos sagrados. Talvez a casa mais feliz em que tive a honra de ser admitido tenha sido aquela em que às vezes era um pouco difícil encontrar uma cadeira confortável: os cães sempre as ocupavam. Infelizmente, onde estão essas cadeiras confortáveis agora? Onde estão os cães que costumavam sentar-se nelas, piscar e bocejar, e dar as patas em constrangimento humorístico?

“’A sala de estar foi feita para cães, e não cães para a sala de estar’, seria a tese de Lady Barnes, se ela a formulasse.” Foi essa mesma Lady Barnes (Rhoda Broughton) quem disse uma vez: “’Não acredito em Eliza, a empregada que deixo responsável aqui. Da última vez que vim de Londres, os cães estavam tão anormalmente comportados que tive certeza de que ela os intimidava. Falei muito seriamente com ela, e desta vez, fico feliz em dizer, eles estão tão desobedientes como sempre, e fizeram ainda mais maldades do que quando estou em casa.’ E ela ri com um delicado deleite com sua própria loucura. ”

A propósito, entre todos os escritores de ficção, haverá algum cujos cães se igualem aos de Rhoda Broughton? Mesmo o querido autor de Rab e seus amigos [Dr. John Brown], mesmo o próprio Sir Walter, com seu imortal Dandie Dinmonts, não nos deram, parece-me, imagens de cães tão realistas e caseiras como as que aparecem nos romances dela. Eles parecem estar lá, não com um propósito definido, mas como se os cães fossem uma parte tão essencial de sua própria existência que se infiltrassem em seus livros quase sem que ela percebesse. Nenhum espaço em seus romances está completo sem um ou dois cachorros; e cada observação que ela faz sobre eles tem a qualidade de uma carícia. Mesmo em um momento trágico, a heroína não pode deixar de observar que “Mink está deitado de lado, pequeno e peludo, com um protetor solar, com as patinhas cruzadas como as de um santo moribundo”. Mr. Brown, aquele querido e fiel vira-lata, está para sempre associado à infeliz Joan; e o “aufff” de Brenda ressoará pelos corredores do tempo enquanto os romances forem lidos.

Talvez o teste final para o amor de alguém pelos cães seja a disposição de permitir que eles transformem a cama em um acampamento. Não há outro lugar no mundo que combine tão bem com o cão. Na cama ele está a salvo de ser pisado; ele está fora do caminho das correntes de ar; ele tem uma posição de comando para monitorar o que acontece no mundo; e, acima de tudo, a superfície é macia e cede aos seus membros estendidos. Nenhum mero homem pode estar tão confortável quanto um cachorro parece estar em uma cama.

Algumas pessoas se opõem a ter um cachorro na cama à noite; e deve-se admitir que ás vezes ele repousa um pouco pesadamente sobre os membros; mas por que ser tão vil a ponto de preferir o conforto à companhia do cão! Acordar na noite escura e colocar a mão naquele corpo quente e macio, sentir as batidas daquele coração fiel – não é isso melhor do que a preguiça imperturbável? A melhor noite de descanso que já tive foi uma vez, quando um filhote cocker spaniel, que acabara de se recuperar de uma dor de estômago (tomara uma ou duas coca-colas), e estava um pouco assustado com a desconfortável experiência, enrolou-se em meu ombro como um tippet de pele, empurrou suavemente seu focinho frio e macio em meu pescoço, e lá dormi doce e profundamente até de manhã.

A companhia de seu dono é o remédio do cão para todos os males, e apenas um caso extremo justificará mandá-lo embora ou hospedá-lo. Colocar um cachorro num hospital, a menos que haja alguma necessidade cirúrgica ou outra necessidade para fazê-lo, é um ato de bondade duvidosa. Muitos e muitos cães já morreram de saudades de casa. Se ele estiver doente, mantenha-o aquecido e quieto, dê remédios simples como você daria a uma criança, despeje chá de carne ou leite maltado em sua garganta, ou mesmo um pouco de uísque, se ele estiver fraco por falta de comida; e deixe-o viver ou morrer, como fizeram nossos pais e os cães de nossos pais – em casa.

O pior mal que pode acontecer a um cachorro, não é preciso dizer, é se perder. As próprias palavras “cachorro perdido” evocam imagens de miséria canina que nunca poderão ser esquecidas por aqueles que as testemunharam. Vi um cachorro perdido, coxo, emaciado, ferido, com pés doloridos, faminto e sedento, mas sofrendo tão intensamente de medo, solidão e desespero – pela mera sensação de estar perdido – que ficou absolutamente inconsciente de sua condição corporal. A agonia mental foi tão maior que engoliu a dor física. Um pequeno Boston terrier, perdido em uma cidade grande por dois ou três dias, ficou tão debilitado em seu sistema nervoso que nenhum cuidado ou carinho poderia restaurá-lo à equanimidade, e foi necessário matá-lo. Oh, leitor, não ignore o cachorro perdido! Socorra-o se puder; preserve-o do que é pior que a morte. É fácil reconhecê-lo pelo olhar de terror nervoso, pela cauda caída, pelos movimentos incertos.

Há uma experiência pessoal de remorso, da qual eu ficaria feliz em desabafar com o leitor. Certa vez, tornou-se meu dever sacrificar um cachorro que sofria de alguma doença incurável. Em vez de fazer isso eu mesmo, como deveria ter feito, levei-o a um lugar onde os cães perdidos são recolhidos e onde aqueles para quem não se encontra um lar são misericordiosamente destruídos. Lá, em vez de conduzi-lo à câmara mortuária, como, mais uma vez, deveria ter feito, entreguei-o ao carrasco. O cachorro era anormalmente nervoso e tímido; e quando foi arrastado contra sua vontade, ele se virou, tanto quanto pôde, e lançou para mim um olhar de horror, de medo, de apelo agonizante – um olhar que me assombrou durante anos.

Se ele tinha alguma ideia do que lhe estava reservado, não sei, mas é altamente provável que sim. Cães e outros animais são maravilhosos leitores de mentes. Conheci dois casos em que alguma discussão sobre a necessidade de matar um cão velho, realizada na sua presença, foi rapidamente seguida pelo desaparecimento repentino e inexplicável do animal; e nenhuma notícia dele jamais pôde ser obtida, embora os maiores esforços tenham sido feitos para obtê-las. Os cavalos são inferiores apenas aos cães nesta capacidade. Freqüentemente, especialmente no caso de cavalos ferozes ou meio quebrados, uma intenção passará da mente do cavalo para a mente do cavaleiro ou cocheiro, e vice-versa, sem que a menor indicação seja dada pelo cavalo ou pelo homem. Homens que montam cavalos de corrida me disseram que uma súbita convicção em suas próprias mentes, no decorrer de uma corrida, de que não conseguiriam vencer, passou imediatamente para o cavalo e fez com que ele diminuísse a velocidade, embora eles não tivessem cessado de instá-lo. É notório que pilotos tímidos e pessimistas perdem frequentemente corridas que deveriam ganhar.

Quanto às histórias notáveis sobre este ou aquele animal, talvez se possa dizer que são provavelmente verdadeiras quando ilustram as capacidades perceptivas do animal, e provavelmente falsas quando dependem do seu poder para se originarem. Recentemente apareceu uma reportagem de uma corrida entre mergulhões selvagens: como os mergulhões se reuniram e organizaram as preliminares (não foi dito se eles fizeram registros sobre o evento ou adotaram o sistema de pool de apostas), como a corrida foi realizada, ou melhor, voada, em meio a intensa excitação lunática, e como o vencedor foi saudado com gritos de aplausos!

Algum poder de invenção os animais, e especialmente dos cães, certamente têm. Existe o truque familiar que os cães fazem quando um, para tirar um osso do outro, corre um pouco, dá o latido que significa a presença de um intruso, depois volta e foge silenciosamente com o osso que o outro cão, na curiosidade de ver quem vem, caiu impulsivamente. Este é um exemplo não apenas de raciocínio, mas de pensamento criativo.

Em geral, porém, quando os cães nos surpreendem, como acontece frequentemente, é pela delicadeza e agudeza dos seus poderes perceptivos. Quão infalivelmente distinguem entre diferentes classes de pessoas, como, por exemplo, entre os membros da família e os empregados; e novamente, entre os criados e os amigos da casa! Inquestionavelmente, o cão tem três conjuntos de maneiras para essas três classes de pessoas. Ele tomará na cozinha liberdades que jamais sonharia tomar na sala de jantar. Sabemos que nossa cozinheira fugiu da cozinha aterrorizada porque Fígaro, um magistral cocker spaniel, ameaçou mordê-la se ela não lhe desse imediatamente um pedaço de carne. Figaro concluiu que a cozinheira era em parte sua cozinheira e que ele tinha o direito de intimidá-la, se pudesse.

Quanto aos diferentes membros da família, o cão irá “avaliá-los” com um instinto infalível. É impossível esconder dele qualquer fraqueza de caráter; e se você for forte, ele também saberá disso.

Enquanto escrevo estas linhas, a visão do “Sr. Guppy” surge diante de mim. Guppy era um Boston terrier muito pequeno, com cabeça branca, mas de cor tigrada. Ele tinha uma linda “caneca”, muito parecida com a de um bulldog, com nariz curto, mandíbulas largas e muita pele solta pendurada em seu pescoço robusto e pequeno. Deve-se admitir que ele era um tanto auto-indulgente, estando continuamente à espera de uma oportunidade de se deitar perto do fogo – uma situação considerada por seus amigos como prejudicial para ele. O Sr. Guppy me entendia muito bem. Ele sabia que eu era uma criatura pobre, fraca, descontraída e distraída, com quem ele podia tomar liberdades; e, portanto, quando estávamos sozinhos, o malandro dormia com a cabeça na lareira, enquanto eu estava absorto em meu livro. Mas ouça! há um barulho na escada, de alguém que o Sr. Guppy amava e temia mais do que qualquer cachorro jamais me amou ou temeu; e imediatamente o pequeno impostor se levantava e rastejava suavemente de volta ao seu lugar, num tapete no canto; e ali seria encontrado deitado e piscando, com uma expressão de perfeita inocência, quando a disciplinadora entrava na sala.

Os cães têm a mesma sensibilidade que associamos a homens e mulheres bem-educados. Sua polidez é notável. Ofereça água a um cachorro quando ele não estiver com sede, e ele quase sempre dará uma ou duas voltas, só por cortesia, e para mostrar sua gratidão, conheço um grupo de cães que nunca se esquecem de vir avisar a dona quando terminaram de jantar, para agradá-la. E se o jantar ainda não foi servido, notificá-la-ão imediatamente da omissão. Se acontecer de você pisar no rabo ou na pata de um cachorro, com que avidez – depois de um irreprimível ganido de dor – ele lhe dirá, por meio de suas carícias, que sabe que você não teve a intenção de machucá-lo e que o perdoa!

Além disso, nas relações uns com os outros, os cães têm um aguçado senso de etiqueta. Um conhecido viajante faz esta observação inesperada sobre uma tribo de homens negros nus, que vivem numa das ilhas dos Mares do Sul: “Nas suas relações diárias há muitas coisas rígidas, formais e precisas.” Quase a mesma observação pode ser feita sobre os cães. A menos que tenham relações muito íntimas, eles se esforçam muito para nunca se esbarrar ou mesmo tocar um no outro. Um cachorro passar por cima de outro é uma violação perigosa da etiqueta, a menos que sejam amigos especiais. Não é incomum que dois cães pertençam à mesma pessoa e vivam na mesma casa, mas nunca prestem atenção um no outro. Temos um spaniel tão digno que nunca permitirá que outro membro da família canina coloque sua cabeça sobre ele; mas, com o egoísmo de um verdadeiro aristocrata, não hesita em recorrer aos outros cães para esse fim.

Muitas vezes a etiqueta canina é tão sutil que é difícil notá-la. Em nossa casa há dois cães incompatíveis que, em circunstâncias normais, ignoram completamente um ao outro, e entre os quais qualquer familiaridade seria ferozmente ressentida. E, no entanto, quando todos estamos caminhando, se eu for obrigado a repreender ou punir um desses dois, o outro correrá até o ofensor, latirá para ele e até o empurrará, como se ele estivesse dizendo: “Bem, velho, você não tem vergonha de si mesmo?” E o outro cachorro, sentindo que está errado, suponho, submete-se humildemente ao insulto.

Uma família de seis cães costumava formar casais, cada casal em termos de intimidade e carinho especiais; e além desses relacionamentos havia muitos outros entre eles. Por exemplo, todos eles se submetiam ao cão mais velho, embora ele fosse menor e mais fraco que os demais. Se uma briga começasse, ele pulava entre os competidores e a interrompia; se um cachorro se comportasse mal, ele atacava o agressor com um rosnado de advertência; e este exercício de autoridade nunca foi ressentido. Os outros cães pareciam respeitar o peso dos anos, o seu carácter, que era dos mais elevados, e a sua coragem moral, que era indubitável. Este mesmo cachorro tinha muitas características humanas. Ele e seus companheiros dormiam juntos num sofá no andar de cima, onde, numa noite fria, se aconchegavam num amontoado indistinguível. Às vezes o velho cachorro deitava-se antes dos outros e depois, descobrindo que precisava do calor e da companhia da presença deles, ia para o corredor, enfiava a cabeça entre os balaústres e choramingava baixinho até que subissem para se juntar a ele.

Os cães têm alguma noção do que é certo e errado? Eles têm, como todos concordam, um senso de humor, e também um senso de vergonha, perfeitamente distinto do medo do castigo. Do seu sentimento de vergonha, deixe-me dar um exemplo. A visão do cão, pelo menos no que diz respeito a objetos estacionários, é muito fraca, sua confiança real está em seu olfato, e muitas vezes vi um cachorro confundir alguém de sua própria família com um animal estranho, correr em sua direção, com todos os sinais de hostilidade, e então, quando chegou a poucos metros do outro cachorro, de repente deixou cair o rabo entre as pernas e saiu furtivamente, como se temesse que alguém tivesse notado seu erro absurdo.

Será que um animal deveria possuir senso de humor e senso de vergonha, sem ter também algum senso elementar de certo e errado? Mas mesmo que se pense que ele é desprovido desse sentido, é certo que ele possui aqueles impulsos bondosos a partir dos quais ele foi desenvolvido. Tudo o que há de melhor no homem surge de algo que é praticamente o mesmo no cão e nele, a saber, o instinto de piedade ou benevolência. A esse instinto, tal como existe nos animais inferiores, Darwin atribuiu a origem da consciência no homem; e agora há poucos filósofos, se é que há algum, que dariam uma explicação diferente disso. Já vi um cachorrinho com menos de seis meses correr para confortar outro cachorrinho que chorava de dor; e o impulso que motivou este ato foi essencialmente o mesmo que impulsiona os mais nobres da humanidade quando fazem amizade com os pobres ou aflitos. Somos semelhantes aos animais inferiores moralmente, bem como física e mentalmente.

Mas esta é uma descoberta moderna. É surpreendente e confuso perceber quão pouco o Cristianismo organizado fez pelos animais inferiores. A concepção eclesiástica deles era simplesmente que eram criaturas sem alma e, portanto, não tinham direitos contra a humanidade ou nas mãos dela. Até hoje, essa concepção permanece, embora seja qualificada, é claro, por outras considerações mais humanas. Até o Cardeal Newman disse:

Não temos deveres para com a criação bruta; não há relação de justiça entre eles e nós. É claro que somos obrigados a não tratá-los mal, pois a crueldade é uma ofensa à santa lei que nosso Criador escreveu em nossos corações, e isso Lhe desagrada. Mas eles não podem reivindicar nada de nossas mãos; em nossas mãos eles estão absolutamente entregues. Podemos usá-los, podemos destruí-los a nosso bel-prazer: não para nosso prazer desenfreado, mas ainda assim para nossos próprios fins, para nosso próprio benefício e satisfação, desde que possamos dar um relato racional do que fazemos.

Esta posição, embora talvez não seja cruel em si, resulta inevitavelmente em crueldades ilimitadas. Quando um viajante inglês censurou uma senhora espanhola por ter atirado um gatinho doente pela janela, ela justificou-se dizendo que o gatinho não tinha alma; e esse é o ponto de vista nacional.

O protestantismo tem sido quase tão indiferente quanto o catolicismo aos animais inferiores. Na verdade, a consciência que existe fora da igreja, católica ou protestante, neste assunto, superou a consciência da igreja. “A crueldade”, disse Du Maurier, “é o único pecado imperdoável”; e o mundo está lenta mas seguramente chegando a essa opinião. O despertar há muito adiado da humanidade para o sofrimento dos animais não se deveu a um declínio da concepção eclesiástica deles, nem mesmo ao novo conhecimento relativo à origem comum do homem e dos animais; na verdade, precedeu ligeiramente esse conhecimento; mas foi devido ao esclarecimento gradual e ao aperfeiçoamento moral da raça, especialmente da raça de língua inglesa. O século XIX, como muitas vezes nos dizem, assistiu a mais descobertas e invenções do que as que tinham sido feitas nos seis mil anos anteriores; mas acredito que nas eras futuras nem uma dessas descobertas e invenções, nem todas juntas, serão tão importantes como fatores de desenvolvimento e elevação do homem, como o serão aquelas leis e sociedades humanas que surgiram pela primeira vez naquele século.

O progresso da humanidade é muito mais moral do que intelectual. As autoridades competentes dizem-nos que o anglo-saxão de hoje é mentalmente inferior ao grego que viveu há dois mil anos: e se a raça humana melhorou durante esse tempo, não é tanto porque o homem avançou no conhecimento, mas porque ele adquiriu mais simpatia pelos seus inferiores, sejam eles brutos ou humanos, mais generosidade, mais misericórdia para com eles. Nem Stevenson, nem Faraday, nem Morse, nem Fulton, nem Bell, fizeram tanto pela raça humana, para não falar dos brutos, como fez aquele duelo irlandês que, no ano de 1822, propôs no Parlamento Inglês, em meio a uivos e gritos de escárnio, o que mais tarde se tornou a primeira lei para a proteção de animais mudos já incluída no estatuto de qualquer país. Todo movimento para o alívio da criação bruta originou-se na Inglaterra; e quando amaldiçoarmos John Bull https://pt.wikipedia.org/wiki/John_Bull_(personagem) por uma coisa ou outra, lembremo-nos desse fato para sua honra eterna!

É difícil separar-se de um velho amigo cachorro sem esperança de encontrá-lo novamente, é difícil acreditar que o espírito de amor que queimava tão firmemente nele se extinguiu para sempre. Mas para aqueles que defendem o que chamei de concepção eclesiástica dos animais inferiores, nenhuma outra visão é possível. O devoto católico e poeta requintado, Dr. Parsons, expressou lindamente este fato:

Quando os pais morrem, há muitas palavras a dizer—
Palavras amáveis, consoladoras – sempre se pode rezar;
Quando as crianças morrem, é natural contar
A mãe deles: “Certamente está tudo bem com eles!”
Mas para um cachorro, essa era toda a vida que ele tinha,
Já que a morte é o fim dos cães, seja boa ou má.
Este era o seu mundo, ele estava contente aqui;
Não imaginei nada melhor, nada mais querido,
Do que sua jovem amante; não buscou nenhuma esfera superior;
Não tendo pecado, pediu para não ser perdoado;
Nunca adivinhei sobre Deus nem sonhei com o paraíso
Agora ele faleceu, tanto amor
Sai da nossa vida, sem uma esperança no céu!

Mas não há esperança? Não há tanta — ou, se o leitor preferir, tão pouca — esperança para o cão como há para o homem? Anos atrás, lembro-me de ter lido numa importante revista a declaração de que, sem dúvida, alguns homens, os mais iníquos, serão extintos com a morte, ao passo que o resto da humanidade será imortal. Esta visão tinha alguns adeptos na época, mas agora seria considerada irracional por quase todos. Quem pode acreditar que entre o melhor e o pior homem exista um abismo que justifique um destino tão diverso! Além disso, aprendemos que não existem abismos ou saltos na natureza. Uma coisa desliza para outra; toda criatura é um elo entre duas outras, e o próprio homem pode ser rastreado física, mental e moralmente até os animais inferiores.

Não é então razoável supor que a imortalidade pertence a todas as formas de vida ou a nenhuma, que se o homem é imortal, o cão também o é? Até mesmo especular sobre este assunto parece quase ridículo, pois nosso conhecimento é tão limitado; e ainda assim é difícil evitar especulações. A transmigração das almas pode ser um fato, ou os homens, os cães e todas as outras formas de vida podem ser simplesmente formas, fases temporárias, procedendo de uma fonte e a ela retornando. Mas, infelizmente, todas as suposições que podemos fazer tornam-se quase, se não totalmente insustentáveis, pelo simples fato de o intelecto humano as ter concebido – é tão improvável que encontremos a solução certa!

Nesta situação, o que parecemos obrigados a fazer é abster-nos de conclusões precipitadas, e especialmente egoístas, para manter as nossas mentes abertas, para considerar os animais inferiores não apenas com piedade, mas com uma certa reverência. Não sabemos o que ou de onde são; mas sabemos que a natureza deles se assemelha à nossa; que eles têm Individualidade, como nós a temos; que sentem dores, tanto físicas como mentais, que são capazes de afeto; que, embora inocentes, como acreditamos, os seus sofrimentos foram e são indescritíveis. Não há mistério aqui?

Para muitos homens, talvez para a maioria dos homens, um cão é simplesmente uma máquina animada, desenvolvida ou criada para a conveniência da raça humana. Pode ser que sim; e mais uma vez pode acontecer que o cão tenha o seu lugar de direito no universo, independente e independente do homem, e que um dano causado a ele seja um insulto ao Criador.


Notas:

Procurei ser fiel ao estilo da época e mantive substantivos, pronomes, gêneros e plurais.

Repare na ironia do autor ao estocar as nobres famílias da Nova Inglaterra e o ressentimento dirigido a um amigo não identificado, preconceituoso de suas atitudes liberais.

Henry Childs Merwin é conhecido universalmente por ter escrito “Thomas Jefferson

4 comentários sobre “Sobre Cães e Homens

  1. Amazing. Adorei. E como disse a minha boa e velha vózinha ” eu não confio em quem não gosta de cachorro”. Falou e disse! Tenho dois aqui. Os mestres da casa e como vc disse no seu texto: são eles quem me levam para passear. Aprovaram a visita sejam bem vindos. Meu cachorro não gostou nem tenta. É assim que é 😊 parabéns pela traduçáo.

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