Embora muitos governos, incluindo os países ricos, tenham reduzido ou parado de coletar e relatar dados sobre o surto global de SARS-CoV-2, o vírus segue feliz em sua história evolutiva.
As últimas edições são as variantes BA.2, BA.2.12.1, BA4, BA5, e mais uma montanha de X-alguma-coisa (onde X significa ‘recombinante’), todas com taxas de transmissão muito altas, algumas ao redor de 1:25.
Um estudo pré impresso publicado no site Biorxiv, com o título “Anticorpos de Escape BA.2.12.1, BA.4 e BA.5 Induzidos Pela Infecção por Ômicron” [link, em inglês], contém muitos pontos de dados interessantes e preocupantes. É um artigo científico comprido, com 46 páginas e muitos detalhes.
Eu me dei ao trabalho de ler, para que você não precise. O sumário executivo é este:
As novas mutações escapam facilmente aos anticorpos produzidos em infecções anteriores, como também escapam aos anticorpos produzidos pelas vacinas. Isso significa: os anticorpos que você adquire ao se recuperar de um surto de COVID-19 ou de uma injeção de reforço da vacina agora não funcionarão tão bem.
Esta é uma das várias razões pelas quais a China está lutando muito para conter seus surtos de BA2. Entre os problemas, estão a) a baixa taxa de vacinação do segmento mais velho da população [levando a um aumento do excesso de mortes nessa faixa etária] e b) os próprios mecanismos de escape imunológico dessas mutações rápidas do vírus, que causam doenças em massa e com alta taxa de transmissão (1:25). Esses fatores movem-se rapidamente por grandes setores da população.
Além disso, a fase de recuperação da doença não está produzindo uma proteção confiável de anticorpos nas pessoas como se esperava. Esse pressuposto é uma das bases da políticas de “imunidade de rebanho” e das estratégias de convivência com o vírus.
A China já deve estar ciente de alguns desses problemas, pois eles têm encomendado enormes hospitais do tipo “ala Nightingale” [link em inglês, infelizmente] com mais de 400 leitos cada, cuja construção, sob demanda, não leva mais de quatro dias.
Era già tutto previsto
Eu e algumas pessoas de meu círculo – gente que faz estatística profissionalmente – previmos que isso poderia muito bem acontecer. Também previmos que a Big Phama cruzaria os braços, a menos que recebesse mais alguns bilhões de financiamentos de emergência para novas vacinas. Idem com relação à incompetência e/ou má fé de governos, etc.
E assim aconteceu. Temos uma série de cepas muito virulentas que se espalham pelas populações mais rápido que o sarampo, mas até agora não eram tão patogênicas para as pessoas já infectadas ou vacinadas anteriormente.
As probabilidades são de que o próximo inverno no hemisfério norte seja o início de outra pandemia que poderia ser facilmente evitada, e as chances são de maior patogenicidade. Teremos sorte se, de fato, ela não começar aumentar aqui no hemisfério sul em algum momento dos próximos dois meses, em função do inverno.
As marcas da Covid na história serão:
Medidas pequenas e tardias
Falência de pequenas nações.
Mortes aos milhões
Incapacitação a longo prazo.
Novas doenças
Encurtamento da expectativa de vida
Mas também,
Abdicação às responsabilidades
Populações entregues à exploração rentista
Governos cortando pensões e outros benefícios.
Nenhuma alteração nas políticas que possibilitaram a pandemia.
Tudo isso levará, quase tão certamente quanto a noite segue o dia, a outra nova pandemia neste século. Espero estar errado.
* * *
Nova postagem no meio da próxima semana. Não poderei ler as postagens dos membros do blog e dos colegas da blogosfera até o dia 17. Saudações a todos e a todas.
Sou um entusiasta dos blogs (hello!) e fórums de discussão [Bulletin Boards]. Considero-os o verdadeiro repositório da informação de qualidade na Web. Os malefícios das redes sociais são recorrentes nos meus textos, sempre exortando as pessoas à expressão de seus próprios pensamentos fora das câmaras de eco das redes. Pioneiro da Web que sou, nada me é tão deprimente quanto o sufocamento da cultura dos blogs causado pelos facebooks da vida. Felizmente os verdadeiros blogs ainda pulsam com algum vigor alhures. Entre as ilhas de excelência na melancólica Web do século 21 está o blog de Bruce Schneier, eminente e influente especialista em segurança. O blog pode ser descrito como uma congregação de mentes brilhantes que discorrem com fluência e profundidade sobre segurança, privacidade e ciência da computação em geral.
Às sextas-feiras Schneier permite um ambiente mais relaxado [em seu Friday Squid Blog], em que temas mais gerais são discutidos. Durante o último ano e até agora, como não poderia ser diferente, a Covid-19 tem sido ali tema de grandes discussões, com insights instigantes sobre a natureza, curso e perspectivas para a doença. Dentre os membros do blog, o incrível Clive Robinson, que nos brinda com o texto de hoje, traz sempre uma perspectiva inteligente, sob um prisma muitas vezes original, sempre surpreendente e informativo. Às vezes também aterrador, como o futuro possível descrito neste post – que Clive gentilmente nos autoriza a reproduzir. Em minha opinião, os brasileiros precisam levar a ameaça a sério, e pensar profundamente sobre o que ela representa. A elocubração de Clive nos fornece mais um tanto de munição, na luta pela iluminação dos espíritos. Enjoy.
* * *
A respeito de :
“Imunidade de rebanho por vacinação / recuperação será alcançada no Reino Unido em 9 de abril de 2021.”
Eu moro no Reino Unido, e tenho várias doenças crônicas que me tornam “especial”, de acordo com o governo daqui, e tenho o atestado para provar… Eu colocaria esse atestado pendurado na parede em uma moldura, se eu tivesse permissão para sair e comprá-la – isso seria contravenção das “regras de bloqueio necessárias” que estão atualmente em prática …
Então, eu rolaria no chão de tanto rir dessa afirmação estúpida, se não fosse tão terrivelmente triste, de que não apenas muitas pessoas ainda sendo infectadas diariamente, mas que outras, infectadas cerca de um mês ou mais atrás, estão morrendo.
Essas mortes não estão mais nos acima de 70 anos; elas estão agora nos acima de 40, e se a [variante] Brasil P1 colocar um dedão [na Grã-Bretanha], como tem na Europa [continental], em breve serão os acima de 25.
O nível de prevalência é tal que a taxa de mutação é maior que a taxa de imunização… Em outras palavras, embora o Reino Unido tenha começado [a vacinar] muito mais cedo do que outras nações, nós estamos perdendo a corrida.
“Jabs nos braços e novas cepas nos pulmões”.
Quer dizer, o vírus de nenhuma maneira vai se tornar menos virulento com o tempo… O que diabos está acontecendo na Europa, onde a “desarmonia” na vacinação parece insuperável nas frentes politica, médica e econômica, eu não tenho ideia, mas não pode ser bom.
Eu ouço que a Brasil P1 foi encontrada na Europa… também foi encontrada na Índia, que às vezes é chamada de “farmácia do mundo” em alusão às drogas que faz. Bem, eles sabem que estão perdendo a corrida da imunização, e é por isso que eu espero que eles de fato ajam de acordo com a sua declaração, já há um ano, de que “as drogas da Índia são para a Índia”, e que as vacinas que eles têm fabricado, com problemas localizados de produção, podem não ser enviadas ao exterior, mas acabar em braços indianos. Para ser honesto, quem realmente pode culpá-los?
Voltaremos à agricultura de subsistência?
Quanto à “política de imunidade de rebanho”, sabíamos que seria um fracasso, como a Suécia, e agora o Brasil, provaram além de qualquer dúvida. Ainda assim alguns continuam com essa estória por várias razões… Quanto à “imunidade de rebanho natural” (Natural Herd Immunity – NHI), a resposta evolucionária para baixo na virulência, absolutamente essencial [para explicar a hipótese], obviamente não está acontecendo, devido à natureza do ciclo de infecção, portanto nada de NHI.
Pior, agora você pode ter um “double tap“[1], com uma mutação te infectando não apenas uma segunda vez, mas muito mais severamente na segunda vez, como o Brasil demonstrou. Ainda pior, mudando também as faixas etárias afetadas, além das vacinas…
Bem, ao contrário dos outros que acham que Covid estará aqui para sempre, e eu estive alertando o mesmo há quase um ano… Agora estou começando a considerar em meus momentos mais sombrios que a doença realmente não vai durar, porque nós vamos perder a corrida. Isto é, a menos que seres humanos suficientes nasçam com imunidade natural, é uma jornada ladeira abaixo para a humanidade.
A humanidade vivendo em bolsões…
Primeiro haverá uma queda substancial na idade média de morte, que irá provavelmente acabar abaixo de 45 anos no mundo ocidental e talvez 20 em áreas do terceiro mundo. Assim, a taxa de natalidade cairá significativamente, tornando o sistema de saúde algo quase impossível dentro de uma geração ou duas. A taxa de mortalidade viral, por sua vez, aumentará ainda mais.
Se a imunidade inata, ou natural, não acontecer, a humanidade cairá de volta para os números que supostamente eram atingidos sempre que grandes catástrofes planetárias aconteciam. Haverá bolsões [humanos] em lugares isolados onde o vírus não conseguir se estabelecer. Só então o virus vai se extinguir, antes dos humanos, mas não muito antes…
Claro que seria relativamente simples evitar que isso aconteça… Você só teria que ser absolutamente implacável sobre a área a ser isolada. Com efeito, um “atirar para matar” ou uma política semelhante, para as pessoas que tentassem cruzar fronteiras ilegalmente, e restrições tão severas que as fronteiras seriam efetivamente fechadas. O comércio continuaria a atravessar fronteiras, automatizado, mas os humanos não: se chegar aqui, você fica no mar, contra o vento e dá meia-volta sem entrar. As mercadorias seriam higienizadas de maneiras que já falei no passado.
Você pode apostar seus trocados que tal medida já está sendo considerada / falada em países como Nova Zelândia e Austrália. Eles descobriram da maneira mais dolorosa que a quarentena na entrada ao país nunca será confiável, especialmente à medida que o vírus se torna mais virulento e a patogenicidade aumenta.
Na Europa, sabemos por amarga experiência e muitas mortes, quão difícil é manter fora as pessoas que acham que não têm nada a perder e tudo a ganhar tentando atravessar uma fronteira. Isso é um risco 50/50 de morte ou lesão grave debilitante para eles; um risco mais do que aceitável para conseguir o que eles vêem como uma vida melhor (os saltadores de trem do túnel do Canal de Sangat, barcos da morte no mediterrâneo, etc). Alguns dizem que com uma disposição mental assim a única maneira de impedi-los é o “pare o cabra à bala” e isso muito antes de as mutações da Covid-19 aumentarem o risco da entrada ilegal para “potencialmente fatal” para toda a população da região.
Então, temos que ganhar a imunidade, não apenas no ocidente, mas em todos os lugares, antes que a mutação ganhe o mundo. Mas a estúpida política e os egoístas privilegiados, como hoje é tão comum, tornarão uma situação ruim ainda muito pior, só porque eles podem…
[1] A expressão “double tap” descreve a técnica de disparar dois tiros em rápida sequencia para desativar um adversário.
A disseminação descontrolada das variantes mais contagiosas de coronavírus no Brasil parece ter criado versões ainda mais perigosas do vírus que causa a Covid-19. Uma equipe de pesquisadores da Fiocruz documentou as mudanças. Suas descobertas foram registradas em uma pré-impressão no site virological.org, antes da revisão pelos pares. Apresentamos abaixo o resumo em português.
Resumo
Mutações tanto no domínio de ligação ao receptor (RBD) quanto no domínio amino (n) -terminal (NTD) da(s) glicoproteína(s) das espículas do SARS-Cov-2, podem alterar sua antigenicidade e promover o escape da imunidade. Identificamos que as linhagens da SARS-Cov-2, circulando no Brasil com mutações preocupantes no RBD, adquiriram exclusões e inserções convergentes no NTD da proteína S, o que alterou o antígeno NTD-superlocal e outros epítopos previstos para esta região. Esses achados suportam a afirmação de que a transmissão generalizada em andamento da SARS-Cov-2 no Brasil está gerando novas linhagens virais que podem ser mais resistentes à neutralização do que as variantes parentais de preocupação.
(*)Esta é uma pesquisa da Fiocruz. Por alguma razão celestial ela foi publicada em inglês antes desta maltratada língua pátria. Coisas da Torre de Marfim; dos desígnios acadêmicos narcisísticos aqui da Banânia. De qualquer forma, presto um serviço público não-remunerado ao trazer o assunto à atenção do público brasileiro, em língua portuguesa, através deste blog. Talvez um dia Deus me pague [yeah, sure… :rollseyes]