Eu estou abandonando os smartphones como dispositivos de uso pessoal. Desde o começo do ano o meu jaz morto, em uma caixa metálica. Não consigo viver com os muitos problemas dessa infortunada tecnologia.

O principal problema é que os celulares não podem funcionar se não souberem onde o usuário está. Essa característica fundamental de design é explorada sem qualquer limite por indivíduos mal-intencionados, por corporações internacionais e pelos agentes de aplicação da lei e inteligência. Não que eu tenha algo a esconder – na verdade todos temos.
Ah, os prazeres da vida de volta! Sem um celular é possível dedicar meu tempo inteiro à atividades realmente úteis. É libertador poder evitar os lunáticos do WhatsApp; ou o mau gosto e a indigência mental de certos influencers; poder evitar aquele meme do Big Brother [socorro!]. Evitar ver as pessoas tirando selfies diante do espelho, olhando apatetadas para o celular. Ou evitar os golpes do Pix.
Sem o smartphone é muito fácil evitar os robóticos e intoleráveis operadores de telemarketing. É possível evitar também que as companhias de seguros definam o prêmio a pagar pelo seguro do carro, por conta do histórico de localização e informações de acelerômetro extraídos do smartphone [“você fez Campinas-São Paulo em 25 minutos, faz manobras bruscas e freia muito forte“]. Ou ser incluído em um cadastro fantasma de crédito, como os que pululam no mercado e definem os valores que pagamos pelos diversos serviços que usamos.
Evitar ser atropelado. Ou levar um tiro de um sniper do Mossad.
Vou deixar as torturadamente óbvias questões de segurança de lado nesta postagem, para focar em outros atributos igualmente preocupantes e pouco discutidos dos smartphones. Allez.
São dispositivos voltados ao consumo ostensivo
Os smartphones são apenas dispositivos de consumo insano e irrefreável. Nesse aspecto, eles diferem criticamente dos PCs, porque os PCs são dispositivos igualitários, no sentido de que o mesmo dispositivo pode ser usado para tanto para criação quanto consumo de conteúdo. Isso significa que qualquer pessoa com um PC pode criar e consumir, se assim o desejar. Essa igualdade cultural, estabelecida no começo da era da Web [minha referência é o Eterno Setembro de 1993] foi diminuída pelo êxodo dos usuários para os dispositivos móveis – que só podem ser usados para consumo.
Eles não são verdadeiros clientes de rede
Os smartphones têm CPUs poderosas e conexões de rede rápidas, exceto que você é impedido de usar esses recursos de forma significativa, porque seu uso consome a carga da bateria – e as pessoas não querem que a preciosa vida útil da bateria de seus telefones seja drenada desnecessariamente.
Portanto, há uma enorme quantidade de poder de computação e conectividade de rede que, na prática, você não pode usar. Isso leva a uma consequência ainda mais infeliz e ridícula: por causa dessas limitações, em um smartphone você não pode implementar a maioria dos protocolos de rede existentes [ou você pode, mas não sem esgotar a bateria]. O que é um paradoxo para um equipamento voltado à conectividade .
Eles arruinaram o web design
Mas eu provavelmente deverei escrever um artigo inteiro sobre isso.
As tecnologias são opacas
São produtos e serviços com alinhamentos empresariais nebulosos, ou de clara malevolência. Supostamente, com o Android, por exemplo, você é livre para instalar software de fontes arbitrárias e substituir o sistema operacional. Exceto que esses recursos são frequentemente restritos pelos próprios fabricantes, ou pelas telecoms.
Promovem a discriminação
A discriminação contra pessoas que exercem controle sobre seus dispositivos é comum, e qualquer aplicativo de análise vai revelar isso. Há uma expectativa predominante das empresas de tecnologia, de que as pessoas vão sempre abrir mão do controle sobre seus dispositivos, a ponto de aqueles que o fizerem serem minoria suficiente para serem discriminados e terem a funcionalidade de seus dispositivos reduzida por isso. A vida bancária é hoje uma tortura sem smartphones. Mas isso não deveria ser encarado de forma normal. É um abuso terrível e – por motivos óbvios – não deveria acontecer.
Ademais, prevalência de fontes de ransomware operados na Rússia, que vendem contas de celular roubadas da Internet, sugere que o uso de verificação por telefone como estratégia anti-spam não tem sido muito eficaz.
São responsáveis por uma centralização maciça
Um número desproporcional de aplicativos para, digamos, Android, depende de um servidor central operado pelo fabricante do software, com algum protocolo proprietário entre o cliente e esse servidor. De fato, essa é a própria premissa dos sistemas de notificação por push usados pelo Android e iOS.
Eles levaram a uma centralização maciça. Parte do movimento dos ativos de Internet em direção à “nuvem” provavelmente é impulsionado pelo fato de que, embora os smartphones tenham recursos computacionais substanciais, você não pode usá-los por causa da curta duração da bateria. Isso faz com que a computação seja transferida para a nuvem, criando uma dependência de uma entidade centralizada. Quantos aplicativos para smartphones vendidos ainda funcionariam se seus fabricantes falissem ou saíssem do negócio?

Provavelmente o exemplo mais risível da centralidade desempenhada pelo telefone é quando, em um momento de loucura [ou de bebedeira] eu tento criar, em um desktop, uma conta numa rede social qualquer. Após o envio do formulário de registro, o site sempre diz para eu me inscrever através do aplicativo de smartphone, o que é um non sequitur realmente bizarro, já que eu não forneço nenhuma evidência de que eu tenha um smartphone. O que é hilário, no entanto, é que é possível criar uma conta do Twitter de dentro de uma máquina virtual no Android (obviamente sem número de telefone), provando essencialmente que a coisa toda é apenas teatro de segurança.
O que realmente me irrita nessas exigências por números de telefone [que são formatados no infame padrão E.164 – the international public telecommunication numbering plan – plano numérico da comunicação pública internacional], no entanto, é a maneira como eles me obrigam a abandonar meus orgulhosos princípios de pioneiro independente da Internet, sem documento e sem telefone.
Quando o Google exige um número E.164, eles não fazem isso apesar do fato de o E.164 ser um padrão técnico um tanto opaco e fechado, mas exatamente por causa disso. Basicamente, tudo de ruim sobre o namespace E.164 e suas organizações constituintes é precisamente o que o torna atraente para fins nebulosos em organizações como o Google et caterva.
Os gigantes da conectividade e seus operadores sustentam uma rede opaca, mantendo-a assim, porque no íntimo consideram problemática a própria abertura da internet. Isso representa essencialmente a retirada intencional do papel da Internet original como a raiz de todas as redes, orquestrada por uma organização que está ironicamente associada à própria internet. É um movimento deprimente de se ver.
(*) Editado por questões de estilo