No início não havia nada. As extremidades traseiras de nossos ancestrais animais que nadavam nos mares centenas de milhões de anos atrás estavam em branco, lisas, relegando a entrada e saída de todos os alimentos a um único buraco multiuso. Ecos evolutivos dessas formas de vida ainda existem em corais, anêmonas-do-mar, águas-vivas e uma legião de vermes marinhos cujo trato digestivo assume a forma de um saco.

Esses animais são muito estritos com suas refeições, alimentando-se de uma bola de cada vez e, em seguida, expulsando os restos pelo mesmo orifício. As entranhas dessas criaturas funcionam como estacionamentos, sujeitas a rígidas cotas de vagas que restringem o fluxo do tráfego.
O surgimento de uma porta dos fundos transformou esses estacionamentos em rodovias – as “entranhas” lineares que dominam o desenho dos corpos dos animais hoje. De repente, os animais podiam se dar ao luxo de engolir várias refeições sem a necessidade de se preocupar com o descarte entre elas; surgiram tratos digestivos alongados e regionalizados, dividindo-se em câmaras que podiam extrair diferentes nutrientes e hospedar suas próprias comunidades de micróbios.
A compartimentação tornou mais fácil para os animais aproveitarem melhor suas refeições. Com o alongamento e abertura do final do intestino, muitas criaturas cresceram em formas corporais cada vez maiores e começaram a se mover de novas maneiras (Seriam necessários vários outros éons para que as nádegas verdadeiras – os acessórios carnudos e gordurosos que flanqueiam o ânus de alguns animais – como os humanos, evoluíssem).
Como a porta dos fundos foi aberta
Não é muito claro como a porta dos fundos foi escavada. Tecidos macios, sem ossos, não são exatamente amigáveis ao registro fóssil, tornando difícil provar qualquer teoria. Uma das hipóteses mais antigas sustenta que o ânus e a boca se originaram da mesma abertura solitária, que se alongou, cedeu no centro e se partiu em duas. O ânus recém-formado então se moveu lentamente para a parte posterior do animal. Claus Nielsen, biólogo evolutivo do Museu de História Natural da Dinamarca, é um fã dessa teoria; ela é razoavelmente parcimoniosa e evolutivamente equitativa: neste cenário, tecnicamente nem a boca nem o ânus surgiram primeiro; eles surgiram como gêmeos univitelíneos.
Outros, como Andreas Hejnol, defendem uma ideia diferente, em que a boca formalmente precede o ânus, que surge espontaneamente na outra extremidade do corpo. “É um avanço secundário”, disse Hejnol. “Primeiro o intestino se forma, e então faz uma conexão com o mundo exterior.” Abrir um buraco extra no corpo não é tão difícil: alguns vermes conseguiram esse feito evolutivo dezenas de vezes.
Hejnol e seus colegas ainda estão reunindo apoio para sua hipótese, mas afirmam que já há alguns argumentos contra a ideia de divisão de buracos: os animais não expressam os mesmos genes em torno da boca e do ânus, o que vai contra a noção de que as duas aberturas são cortadas do mesmo tecido evolutivo.
Se essa hipótese se provar correta, porém, não encerrará necessariamente o caso da origem evolutiva do ânus. Muitos estudiosos acham que o ânus foi uma inovação tão útil que os animais o desenvolveram independentemente pelo menos meia dúzia de vezes, talvez muitas mais, não necessariamente da mesma maneira. Essa linha de tempo tem ainda outras ramificações: algumas criaturas perderam sua abertura anal – e algumas podem ter adquirido as delas ainda mais para trás na história.
Ctenóforos e a Cloaca
Uma das maiores pregas na narrativa do ânus liso assume a forma da comb-jelly [gênero Ctenófora] – um animal gelatinoso que vagamente se assemelha a um capacete de Darth Vader translúcido. Acredita-se que a espécie tenha pelo menos 700 milhões de anos de idade. Já em 1800, os cientistas se intrigavam com a parte de trás das ctenophoras e se perguntavam se elas estavam excretando fezes a partir do que viam como um conjunto de poros de aparência estranha. Mais de um século se passou antes que seus atos de defecação fossem finalmente capturados pelas câmeras, pelo biólogo William Browne, da Universidade de Miami, e seus colegas, que filmaram uma dessas criaturas amorfas fazendo um grande monte em um laboratório. Se ctnóforas estavam fazendo cocô, aquele cocô devia estar saindo de algum tipo de buraco traseiro. Talvez, alguns disseram, a história do ânus fosse muito mais profunda no tempo do que muitos pensavam.

Nos meses após a equipe de Browne publicar suas descobertas, os cientistas discutiram repetidamente sobre sua importância. Alguns saudaram a descoberta como revolucionária. Mas outros, Hejnol entre eles, argumentaram que o embaraçoso vídeo afinal não significava tanta mudança dogmática assim. Provavelmente as ctenóforas evoluíram seus ânus independentemente de outros animais e chegaram a um desenho semelhante por acaso; não há como dizer quando exatamente isso pode ter ocorrido. Tal cenário deixaria a cronologia de nosso próprio ânus intacta – por ter emergido de uma linha diferente de criaturas, em um ponto separado no tempo.
Alguns dos back-ends mais intrigantes são os análogos multitarefas do ânus chamados cloaca, que mescla as partes terminais dos tratos digestivo, urinário e reprodutivo em uma única abertura – essencialmente um foyer de evacuação para fezes, urina, ovos e espermatozóides. Pode ser até que eles representem a ponte evolutiva entre os tratos reprodutivo e digestivo que levou a alguns dos primeiros ânus.
Mesmo assim, as cloacas trazem riscos: todos os resíduos digestivos ficam praticamente em contato direto com a genitália; basicamente uma infecção maligna esperando para acontecer. Qualquer rebento vivo que passe pelo trato reprodutivo será ameaçado pela proximidade de patógenos transmitidos por cocô. Talvez seja por isso que os ânus humanos se rebelaram e se aventuraram por conta própria.
Seja qual for a razão por trás disso, a mutação que acabou com a cloaca tornou os ânus humanos “completamente entediantes”. No que toca os orifícios de saída dos animais, os nossos são totalmente padrão, capazes de pouco mais do que expulsar resíduos do intestino, sem maiores frescuras.
Gluteus Maximus
A única qualidade redentora do monótono orifício posterior dos humanos é a característica que desenvolvemos para amortecê-lo: nossas nádegas infames, as mais volumosas documentadas até agora, graças à nossa tendência bizarra de andar por aí em nossas duas pernas de primatas. Esse padrão de locomoção remodelou a pelve, que por sua vez reorientou nossos músculos. O glúteo máximo – o músculo robusto que impulsiona nossa habilidade de correr e escalar – inchou em sincronia e se cobriu com uma camada aconchegante de gordura que alguns cientistas acham que também sirva como reserva de energia. Ânus à parte, nossas nádegas são a verdadeira inovação.
A evolução explodiu o traseiro humano fora de proporção; nossas normas culturais rapidamente seguiram o exemplo. Nós contemplamos os traseiros uns dos outros com luxúria, às vezes nojo e/ou fascinação culpada. Nós os tatuamos, nós os esculpimos; nós os sexualizamos. Nós fazemos sambas, raps e funks sobre eles, com abandono. Os traseiros, em troca, tornam para nós muito mais fácil correr – mas muito mais difícil manter o ânus limpo.

Talvez isso seja parte da razão pela qual os humanos têm tanta vergonha de seus traseiros. Nós até optamos por “bunda” como um eufemismo para ânus em uma conversa casual. As nádegas não são o ânus, mas o cobrem, física e talvez figurativamente. Elas obscurecem a visão, e portanto a percepção de que, desde o início, nossa extremidade digestiva sempre foi uma maravilha. Ela abriu o caminho evolutivo de nossos ancestrais e tornou nossa própria existência possível.
Nosso ânus é uma ovelha vestida com uma roupa de lobo fabulosa, e simplesmente não conseguimos lidar com isso [I’m so sexy it hurts!]. Talvez seja a hora de sermos sensatos fazer como o peixe-pérola, que vive confortável com o que tem entre as bochechas.
Post Scriptum:
Este texto é baseado em um trabalho original de Katherine J. Wu, publicado na revista americana The Atlantic, sob o título “The Body’s Most Embarrassing Organ Is an Evolutionary Marvel” [“O Órgão Mais Embaraçoso do Corpo É uma Maravilha Evolutiva”]. É um texto delicioso. Wu consegue abordar um tema científico [e filosoficamente espinhoso – A Teoria da Evolução!] apresentando-o de forma leve, cheia de trocadilhos e tiradas de duplo sentido. Aposto que você leu com um sorriso nos lábios. Se o fez, meu objetivo foi atingido. Eu não podia privar o povo brasileiro e lusófono deste meu achado literário. Tenho trabalhado nele desde que foi publicado, em maio. Francamente eu esperava que, no país do ‘bum-bum’, algum jornal da grande mídia o publicasse. Parece que me enganei. Unilateralmente eu o adaptei [em tamanho reduzido] para a cadência brasileira e lusófona e estou a publicá-lo como se Creative Commons fosse. Meus motivos são razoáveis:
- Os povos brasileiro, angolano, moçambicano, e em grande medida também o português, precisam [quase todos desesperadamente] de literatura científica, e neste período histórico o povo brasileiro precisa também de leveza. É muito bom quando a ciência encontra a leveza. Não há veículo melhor para comunicar ciência ao povo brasileiro do que a espirituosidade.
- Meu site não tem (ainda) fins lucrativos – embora os custos de operação não sejam desprezíveis. Ademais, meu próprio conteúdo é distribuído sob licença Creative Commons. Meu interesse primário genuíno é a divulgação da ciência e da tecnologia da informação [mas é claro que sei que isso também faz muito bem ao meu CV].
Acho que posso ser perdoado.